domingo, 30 de setembro de 2007

O Cartão

A vida daquele rapaz eram só flores. Não que tudo estivesse sempre bem. Afinal, ele era um jovem comum que, como qualquer outra pessoa, tinha alegrias, tristezas, vitórias e decepções. Mas a vida dele era florida por conta de seu trabalho. Ele era entregador de uma floricultura. Passava o dia daqui pra lá, de lá pra cá entregando vasos, buquês e arranjos.

Mas, além das flores, o que ele gostava mesmo era de ver os rostos emocionados, surpresos e, vez ou outra, até tristes, ao receberem as flores e abrirem os cartões. Sim, os cartões. Essa era sua verdadeira paixão. Tão apaixonado era, que sempre lia os escritos antes de entregá-los, só para saber o que de tão bom havia ali. E ficava imaginando qual seria a reação de quem o recebesse. Afinal, ele nunca tinha mandado, tampouco recebido flores e, por isso, não fazia idéia do que vinha escrito naqueles pequenos pedaços de papel.

E, a partir disso, descobriu um novo mundo. Cheio de paixões, de palavras bonitas, de histórias de amor, poemas e promessas de uma vida cheia de aventuras e romances eternos. Vez ou outra alguns cartões vinham mais apimentados, com frases sobre noites de amor e corpos em chamas. Mas nada que o deixasse sem graça. Só não gostava de ler os cartões de pêsames. Esses eram demasiadamente tristes e sem graça.

Mas os de amor! Ah, como eram belos. E lendo, ele fantasiava como seria o dia em que mandaria seu primeiro buquê a uma linda e amada garota. Rosas vermelhas, copos de leite brancos, flores do campo, girassóis e junto um cartão cheio de palavras apaixonadas.

Guardava frases de um, retirava versos de outro e ia juntando tudo para, quando chegasse a sua vez pudesse escrever as palavras mais bonitas possíveis. Afinal, seu amor também seria o mais bonito possível.

Até o dia em que encontrou o melhor cartão da sua vida. Aquele em que não seria preciso retirar nenhuma palavra, letra, linha, ou qualquer coisa. Nem mesmo se houvesse qualquer tipo de erro ali. Fosse gramatical ou conceitual. Nada deveria ser mudado. O que ali estava escrito era, simplesmente, tudo o que ele gostaria de dizer para alguém. Mesmo que de forma tão inusitada.

De início ele estranhou bastante aquele presente. Um vaso com um cacto. Coisa mais feia era o tal do cacto. Pequeno, verde, espinhento, sem vida, sem alegria. Só aquela coisa minúscula, meio retorcida dentro do vasinho. Quem era o apaixonado que mandaria um cacto à apaixonada? Não poderiam ser flores de um casal, aquelas. Já estava pressentindo que ao abrir o cartão se decepcionaria com frases do tipo: “Felicidades pela nova casa”, “Parabéns pela promoção”, ou “Você é seco e sem vida como essa planta”.

Porém, naquele envelope ele descobriu uma das coisas mais impressionantes que tinha aprendido depois de tanto tempo trabalhando com as flores. O cartão dizia assim:

“Meu Deus, onde fui amarrar minha égua? Eu aqui esperando lindas flores em um dia especial. Esperando por um buquê de rosas, ou um arranjo de lírios, quem sabe até uma orquídea, mas não! Eu recebo justamente um cacto. Pequeno, seco, sem-graça. Por que é que eu fui arrumar um namorado tão estranho?, é o que você deve estar pensando nesse momento, não é?

Pois é, mas saiba você que o cacto é uma planta linda, que pode dar as flores mais bonitas que existem. E sabe por que são as mais bonitas?

Porque brotam justamente de onde ninguém espera. E o inesperado é sempre muito mais surpreendente. São mais bonitas porque ninguém acredita que saia, do meio de espinhos, algo tão singelo e delicado.

Porém, elas não brotam assim, de repente, sem mais nem menos. Elas precisam de cuidado, carinho, admiração atenção. Muita atenção para surgirem com toda sua beleza. E o que isso tem a ver com a gente?

Tem a ver porque é exatamente o que espero que aconteça conosco. Atenção, carinho, cuidado, admiração, respeito, amizade. Tudo isso para que nós sejamos como a flor do cacto. De onde todos esperam apenas a aspereza do espinho, surja a beleza da flor. Vem comigo?”


E ele chorou. E entregou as flores para aquela menina chorando. E chorou mais ainda ao ver o seu lindo sorriso. E foi embora ainda com lágrimas escorrendo pelo rosto, sonhando com o dia em que deixaria de ser apenas um cacto seco, para encontrar seu amor e ver brotar muitas e muitas flores.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Ordem Natural das Coisas

Eles se conheceram, gostaram um do outro, apaixonaram-se e depois tudo virou amor, segundo ele. Para ela, não. Primeiro foi a paixão, depois conheceram-se, aí veio o gostar e por último o amor. E será que existe mesmo uma ordem para esse tipo de coisa?

Ele não dava o braço a torcer. Dizia ser impossível apaixonar-se por alguém sem antes conhecer a pessoa. “Como posso simplesmente olhar para alguém, sem saber nada dela. Nem mesmo seu nome. Não dá!”, pensava. Para ele, a paixão vinha com o conhecimento, a intimidade, a vida vivida dia-a-dia. Não existia amor à primeira vista.

Ela discordava. Jurava de pés juntos e a todos os santos que tinha se apaixonado por ele desde a primeira troca de olhar. “A paixão é assim. Acontece quando a gente menos espera, em um momento quando nem imaginamos que iríamos nos apaixonar”, defende. Era uma romântica inveterada, daquelas que sonhavam com o príncipe que viria a cavalo.

E quem poderia dizer que algum dos dois estava errado? Quem poderia estabelecer a ordem certa para a vida? Apresentação, gosto, paixão, amor. Amor, paixão, gosto, intimidade. Amizade, intimidade, paixão, amor. Alguém pode me definir o certo? Há mesmo uma fórmula para isso? Não dá para dizer que é um ciclo, como o da água que evapora, transforma-se em nuvem, cai em forma de chuva e volta a evaporar.

É certo que os dois não se entendiam. Um dizia que a ordem era essa e o outro dizia ser aquela. E nesse desentendimento os dois seguiam. Mas seguiam sabendo que não importava o que tinha vindo primeiro, se o ovo, ou a galinha. Para os dois, o que valia a pena era o amor que sentiam. Afinal, quem se importava com a seqüência dos acontecimentos se no fim tudo tinha dado certo?

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Doeu

No fogo ou na água, o amor que queimava aquela moça era sempre algo interessante de se admirar. Conservava uma cara de paisagem. O mundo da lua lhe visitava sem que ela tirasse os pés do chão ou movesse os olhos ao redor, para olhar o movimento dos carros, dos pássaros, das pessoas que ali sorriam, choravam e amavam.

Nada atraía a doce e romântica-jovem-dos-cabelos-loiros mais que o seu amado. Às 18h, sempre, sentava num banco, ao lado de uma ávore esculhambada pela seca e esperava. Minutos depois, saía de lá. Mãos dadas, passos sincronizados, sorriso no rosto e uma alma leve, como formando em dia de colação.

O coração que agora ardia, ardia pelo tanto que já doeu. Aquela pequena nunca encontrara alguém que prestasse. Que a tratasse com dignidade e lhe desse esperança de que dali sairia um lance que a fizesse bater aos mãos para os pais e dizer que agora cuidaria da sua vida. Via naquele bom homem um ser notadamente ideal. Ele concordava e respondia com mais amor.

O problema é que amor demais por vezes ultrapassa a perigosa linha que separa a razão romântica da obsessão. No começo, tudo era lindo. Do meio pro fim, nem tanto. As crises de ciúmes que ele deflagrava corroíam o sentimento, embora nunca questionassem a validade daquela relação. Amar, para aquela menina loira, de olhos azuis e traços mal feitos, importava, até debaixo de crises.

Mas com um tempo tudo foi mudando. Ele tornou-se agressivo. A fez mudar de banco, porque, onde geralmente o esperava, passavam rapazes da faculdade abanando a mão ou parando pra trocar uma idéia qualquer. Um dia, chegou e a viu ao lado de um amigo. Ambos procuravam um livro dentro da mochila, de pé, em frente ao tal banco. O namorado obcecado não pensou duas vezes. Partiu pra cima do jovem e quebrou-lhe dois dentes com um soco certeiro que rasgou seu punho.

Mostras como essa são até simples perto de todas as maledicências que já cometera com a namorada. Quando completaram dois anos, ela decidiu que não aguentaria viver mais um dia naquele inferno. Agora, ardia no fogo da angústia, do medo e da impotência.

Então chegaram em casa numa noite qualquer e ela chamou o rapaz para sentar e explicou a situação. Ao final, pediu que fosse embora para nunca mais voltar. Ele sequer se ajoelhou para implorar perdão e dizer que mudaria. Afinal, já fizera isso umas três vezes e não moveu uma palha após o perdão. Então, fechou a cara com uma tristeza que surgiu de dentro do peito e foi embora.

Mas voltou no outro dia, para ser mal recebido e outra vez rejeitado. No segundo dia também apareceu e passou a vir todas as tardes. Foi renegado em todas as ocasiões. Desistiu e, no décimo dia, sequestrou a menina na saída da faculdade. Colocou-a dentro de um carro e a levou pra longe.

Parou num terreno qualquer, jogou-a no chão e começou a desfiar xingamentos enquanto tirava o cinto para baixar as calças. Depois do último tapa, que sujou sua mão com o sangue da boca e nariz da ex-namorada, deitou por cima dela, abriu suas pernas e penetrou com uma violência que até então não combinava com a peculiar delicadeza. Ficaram ali, os dois, por uns 10 minutos. Ela desmaiou. Ele foi embora, mas deixou um bilhete: “Para não me ver nunca mais, basta ficar calada”.

Momentos depois, o garoto da mochila encontra a amiga jogada no chão. Ele a havia seguido, porque viu um homem encapuzado, de carro estranho, levá-la de perto da faculdade. Ele se aproxima e pergunta, assustado: “Quem foi? Quem foi?”. Ela amassa o bilhete rapidamente, esconde na palma e responde: “Não sei. Ele não tirou o capuz”. O rapaz insiste em levá-la para o hospital. As sirenes da polícia estão cada vez mais próximas, atendendo ao chamado do colega. “Não! Me leve pra casa. Eu só quer ir pra casa”. E os dois, se escondendo da polícia, partiram em silêncio. Ela, de cabeça baixa, via as lágrimas pingarem o chão e sentia a certeza de que jamais amaria alguém.