segunda-feira, 30 de julho de 2007

Na escuridão

Ela se sentia meio perdida. Deitada em sua cama, no escuro, olhando para o teto. Sentia falta de alguma coisa. E não pense você que era alguém, não. Era uma coisa mesmo. Um objeto, algo com que se divertir antes de o sono chegar. Um livro.

Foi acostumada, desde pequena, a dormir sempre acompanhada pelas letras. Quando criança, o pai lia para ela as lindas histórias de princesas, castelos, dragões e fadas que floreavam seus sonhos. Depois, já alfabetizada e, portanto, independente no mundo das palavras passou a dormir, inicialmente, acompanhada dos gibis. Mônica, Cascão e Cebolinha traziam aventuras aparentemente bobas, mas que sempre foram vivenciadas como se ela mesma fizesse parte da turma da rua de baixo.

Mais tarde, na pré-adolescência, os romances de jovens meninas e rapazes a encantavam e faziam sonhar com o seu príncipe encantado. Não aquele do cavalo branco, como nas histórias de criança. Mas sim o mais bonito do colégio, que jogava futebol e tirava boas notas, que lhe levaria para tomar sorvete na praça e ofereceria uma flor roubada do jardim.

Vieram então os dramas adultos e com eles outros romances, aventuras, policiais e por que não – mas só de vez em quando – algumas daquelas belas histórias juvenis que traziam boas recordações. Mas é fato que seu encantamento pelos livros só cresceu. Leituras mais densas, mais carregadas de detalhes, suspense e um pouco de erotismo.

Porém, agora, ela estava ali. Deitada, sozinha na escuridão. A leitura não lhe fazia companhia. Ela sabia o por que de sua solidão literária e, por isso mesmo, não conseguia acreditar que tenha passado tantas noites insones por um detalhe tão bobo: o abajur queimado.

Há mais de mês, a sua fonte de luz noturna tinha estragado. Já era tarde da madrugada, ela já havia adormecido, como de costume, com o livro pousado em seu peito. Acordou com o cheiro forte de queimado. Saía fumaça da base do abajur. Nada que necessitasse de um extintor, mas o suficiente para assustar alguém que já sonhava com viagens pelos mares do sul a bordo de um navio pirata. Bastou tirar o aparelho da tomada e resolveu-se o problema.

Porém, outro problema foi gerado com isso. Surgiu, então, a insônia, a saudade dos livros, das personagens, dos dilemas e dos amores que recheavam as histórias. Um abajur queimado, a razão de tudo. E ela não tomava uma atitude para consertá-lo. Parecia até que tinha deixado de gostar das histórias. Para ela, pior não era perder o sono, mas sim o ritmo dos contos, o fio da meada dos acontecimentos.

Ligar a luz do quarto era algo impensável. Pois, quando sentisse sono, teria que se levantar para apagá-la e a preguiça não permitia isso. Por isso apreciava tanto o abajur, ao alcance de sua mão. Bastava esticar o braço para alcançar o interruptor e criar o breu necessário para seus sonhos literários.

Por isso, enfim, ela foi ao eletricista. Pousou o abajur sobre o balcão e disse: “Moço, meu abajur queimou”. E naquela mesma noite, ela voltou a dormir. Um sono profundo, repleto de fantasias que só os livros podem nos trazer.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O marido e a copiadora

A morte se anunciava antes mesmo que ele pudesse levar a mão direita à cintura dela. Fingiu um acidente. Mas acabou despertando o interesse de meio mundo de curiosos que naquela sala estavam. A desconfiança se fez presente não porque aquele homem era por inteiro um atravessador de casamentos. Tinha até um nobre estilo. Andava bem aprumado, discurso alinhado e educação de granfino. Mas, por seu andar de malandro, era o mais comentado no cafezinho da repartição. Sobretudo por homens casados, que a todo custo queriam encher-lhe a cara de bolachas.

A sorte de Lúcio da Anunciação era que Maria Joaquina, a moça da cintura dura e rebolosa, não estava nem perto do marido. O homem, trabalhador, andava pelo outro lado da cidade. Mexia com corretagem e vivia rondando clientes que, achava ele, tinham dinheiro. Mesmo assim, às 18h10, sempre ao final do expediente, lá estava ele, de olhos esbugalhados, olhando ao redor com semblante de general, pegando os braços da mulher e subindo no ônibus.

Lúcio da Anunciação via sempre aquela cena com sarcasmo. Comentava pelos corredores: “Homem bravo é homem corno!”. Talvez no fundo de seu sentido adivinhava que aquele senhor de quarenta anos – e que ganhava mais 10 com o olhar alheio – desconfiava da mulher dia e noite. Principalmente no final da tarde, quando aquele contínuo atravessava seu caminho na saída da repartição, como se viesse do mesmo canto que sua esposa.

O pior é que de onde surgia ela, surgia ele. Naquele departamento de pouco mais de 20 funcionários, o grupo resolveu acabar o expediente 20 minutos antes do normal. Por isso, às 17h40 todos tomavam o rumo de casa. Exceto Lúcio e Joaquina. Estes fingiam que dobravam a esquina, mas voltavam para as dependências da repartição. Vazio, o lugar provocava-lhes arrepios na espinha. E quando se tocavam, as abotoaduras pareciam ganhar vida e libertavam justo o que deveriam prender.

Passavam, então, os dois, sozinhos, vinte minutos sobre uma mesa a trocar de posição num frenetismo sexual que Joaquina jamais sonhara em ter com seu marido gordo, malvado e trabalhador. Eram momentos sublimes. Ele cada vez mais apaixonado por sua cintura, agarrava-a com força como se quisesse vê-la pelas costas o resto da vida. Ela respirava forte e liberava gemidos de pavor espaçados. Estava assustada e realizada por ser vítima de um domínio tão pleno. Faziam isso todo dia.

Até que o destino trocou de lado e resolveu cutucar a onça do marido, que andava desconfiado com o fogo da mulher nas noites em que brincavam juntos. A culpa foi de Marlene. Ela fazia cópias de documentos e passava o dia inteiro no meio da repartição. Todos a conheciam, porque todos a viam. Ela, faladeira, gostava de investigar a vida de quem ali trabalhava. E achou de tocaiar o casal fogoso que andava se roçando no meio do departamento. Foi quando atrasou na saída e, de dentro do banheiro, viu tudo que a mesa testemunhava há meses e não podia divulgar.

No dia seguinte, saiu mais cedo. Parou o marido de Joaquina na esquina e avisou: “Venha aqui às 17h40. Verás que tua mulher não te merece”. Aquela informação de uma conhecida poderia nascer sem valor. Mas ele andava desconfiado. Armou-se, foi trabalhar e depois rumou em direção ao serviço da mulher. Saiu às cinco horas. Não queria se atrasar.

Naquela tarde, na repartição, houve comemoração no cafezinho. Era aniversário de alguém e os colegas se reuniram para o parabéns. Foi quando Lúcio da Anunciação roçou a mão na cintura de Joaquina. Ela fingiu não sentir, mas todos perceberam. Nesse momento, Marlene percebeu que a morte já se anunciava antes mesmo que ele pudesse levar a mão direita à cintura dela.

A cambada de gente foi embora às 17h40 em ponto. A copiadora também. Lúcio e Joaquina idem. Mas logo voltaram. Estavam bem dispostos nesse dia. Ele ainda conseguiu acariciar sua cintura e levar sua mão para entre as pernas da mulher. Mas logo o marido entra na sala. Ao lado, a futriqueira, com cara de satisfação por delatar os pombos que clamaram por aventuras sexuais.

Ele tira a arma da cintura e embarga a voz. Chorou. Sentia ódio. Cegava de ódio. Com o trabuco em sua direção, a mulher implorava para que não o matassem. Ele gritou apenas “Corram!”. Mas o casal não entendeu. Então, soltou outro berro: “Corram, seus desgraçados!”. Os dois zilaram de mãos dadas, atravessaram a porta e sumiram. Nunca estiveram tão juntos um do outro.

Quando não estavam mais às vistas do marido traído, este vira para a fazedora de cópias, pousa o cano da arma no meio da sua testa e diz: “Se ficares calada, estragarás poucas vidas”. Puxou o gatilho. O tiro certeiro arrebentou-lhe a cabeça e ela se calou para sempre. Mas, antes que Marlene caísse inerte, Joca, o Marido, enfiou a arma na boca e acabou com o serviço. Matou-se. Morreu carregando o peso de saber demais.

domingo, 22 de julho de 2007

Uma lição

Deu tudo errado. Ela gostava dele. Ele gostava dela. Até ai tudo bem. Mas os dois andavam um pouco avoados. Quase não se tocavam. O “eu te amo” já não tinha entusiasmo. Era tudo automático. Faziam as mesmas coisas sempre. Ele chegava lá no mesmo horário. Ela ligava a televisão. Sentavam. Ele fazia uma gracinha, conversava um pouco com a sogra. Os dois viam TV e quando a primeira chamada do Jornal da Globo surgia, o cara chispava fora. Ela se despedia com cara de sono e ia dormir.

Nas noites em que arriscavam uma saída, iam comer uma besteirinha na esquina. E só. Namoravam há quatro anos. Eram jovens, por incrível que pareça. Ele tinha 22 e ela 20. Quase nenhuma diferença de idade. Na verdade, eram iguais na monotonia. E ambos, bem no fundo, não gostavam disso. Preferiam os velhos tempos: noitadas, viagens com amigos pra uma praia bonita, bebida, alegria, pegação. Mas, agora, estavam ali. Um na frente do outro, mergulhados numa mesmice profunda.

O pior é que Lúcio e Ana se acostumaram com essa vida. Nem arriscavam mais sair. Tinham poucos amigos. Ainda assim, a conversa não fluía muito bem. Estavam inócuos para tudo. Ela até deu uma engordadinha. Mas continuava bonita. Morena, olhos esverdeados, voz aveludada e calma, pernas musculosas. Era baixa, mas nem tanto. Com um salto, conseguia enganar um produtor de moda.

E ele, que um dia foi sarado, começou a colecionar uns quilinhos depois que passou a estudar pra concurso. Mas também tinha pinta de modelo. Era branco, cabelos pretos, lisos. E seguia à risca o corte do David Beckham. Por isso, mudava sempre de cabelo. Os amigos achavam a mania um troço pra lá de esquisito, o chamavam de viado a torto e a direito. Mas ele gostava, paciência.

Só não gostou quando Ana ficou estranha demais. Falava pouco. Parecia não ter tanta paciência com ele. Inventava umas dores de cabeça nos dias que ele acenava com as visitas de rotina, nas quais eram engolidos pela grade de programação da Globo. Percebeu que ela passou a esconder sempre o celular. Às vezes, fingia que esquecia.

Ele notou tudo. Até que resolveu lhe fazer uma visita surpresa. Entrou na casa dela, foi para cozinha e ficaram os dois por lá, papeando. Quando chegou uma mensagem no telefone dela, perguntou quem era. Ela disse que era o personal trainer da mãe, que tinha ficado de ligar. Mas ai chega outro recado: “Foi mal. É que as vezes me exagero, mas não consigo para de pensar em você. Beijos, minha paquera”, dizia a mensagem.

Ele enlouqueceu e ela tratou de negar tudo. Disse que o menino estava louco, que era da turma dela, mas tinha confundido tudo. Inventou, mentiu, chorou. Mas admitiu que a primeira mensagem era dele e ela viu e apagou sem que o namorado percebesse. Ele pôs a mão na consciência, mandou ela pra puta que pariu e foi embora. Chorou, pensou, esperou uns dois dias e resolveu conversar. Lúcio não era o namorado que ela necessitava, mas gostava muito da menina. Isso a comovia. Conversaram e decidiram dar um tempinho básico.

O tempo durou duas semanas. Lúcio resolveu ligar pra saber como andavam as coisas. Ana disse que estava muuuuito bem e revelou: tinha ficado com outro e estava gostando. Achava melhor eles acabarem tudo de uma vez. Ele alucinou um pouco e depois desligou o telefone, antes de ser tomado pela sensação de que havia feito tudo errado. E fez mesmo.

Perdeu seu amor porque esqueceu de dar emoção à sua relação. Achou que o tempo segurava tudo e acabou perdendo a gatinha pro primeiro mané que apareceu. Depois, soube que ela e o novo amor viviam em farras, viajavam pra lá e pra cá e abusavam de shows de axé – coisa que ele odeia. Ela estava feliz. O rapaz conseguia fazer o que ele nem pensou em fazer. Percebeu, então, que namoro só é bem firme quando se faz uma coisa diferente a cada dia. Senão, vai sempre dar tudo errado.