segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Temporal

Ela chegou junto das chuvas de fim de ano. Na verdade, ele não se recorda se realmente chovera no dia do primeiro encontro, mas não era importante. Naquele dia, podia ter chovido canivete, meteoro, flores e dinheiro que sua única lembrança seria daquele beijo.

Mas é certo que a chuva o fazia lembrar dela. Talvez porque ela veio como um temporal que lhe lavou todas as tristezas. Talvez porque a chuva é purificante. Ou talvez, porque ele gostava do cheiro da chuva e também do cheiro dela, ainda que fossem bem diferentes. Talvez também porque gostava de ver a chuva caindo, assim como gostava quando ela caía em seus braços. Ou até mesmo porque por mais que a chuva tornasse um belo dia em um dia feio, com ela o dia se alegrava.

Enfim, ele podia ter vários, mas não precisava de muitos motivos. Só sabia que a chuva sempre o fazia pensar nela. Nela e naquelas tardes chuvosas de sábado, quando se abraçavam e passavam o resto do dia juntos ouvindo a água cair lá fora. Enquanto lá dentro, parecia que um sol brilhava só para os dois.

O problema dele é que sabia que a temporada de chuvas não duraria muito mais. Logo as águas iriam embora e a seca viria. Ele precisava fazer um reservatório, criar um sistema de irrigação, ou até, quem sabe, aprender a dança da chuva com algum velho índio. Tudo para não deixar aquelas tardes se acabarem com a seca.

Ou então que a seca viesse, afinal. Ele sabia que não podia lutar contra as forças da natureza. Viriam o calor, as tardes quentes, meses e meses sem que uma gota de água caísse do céu. Mas também sabia que, mais dia, menos dia, a chuva voltaria. Talvez vinda de uma frente fria européia. Daquelas que encobre a torre Eiffel de neve. Que fecha as portas do museu do Louvre. Que deixa o Big Ben com seus ponteiros congelados.

Mas uma hora, as correntes de ar a trariam de volta ao Brasil. De volta para os braços dele. Para chover sobre ele. E aí ele não deixaria de guardar na lembrança se caíssem canivetes, meteoros, fogos de artifício, flores, dinheiro e até mesmo água. Água que levaria toda a seca embora.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O lago

Um cigarro era tudo que ele tinha. Passara a noite fora. Consertara o retrovisor do carro, bebera feito um louco e agora tentava voltar pra casa. Estava bêbado. Bêbado como um palhaço bêbado. O som do carro estava quebrado. A cabeça sem criatividade. Não cantava nada. Só tinha um cigarro. Ascendeu.

Passou por uma ponte, olhou para o lago e lembrou. Há três meses, naquela mesma hora, saia de uma cachoeira, também bêbado, e parava na beira do lago. Ele e ela. Ela e ele. Os dois, juntos, amados, apaixonados. Tirou-lhe a roupa e cravou a mão direita acima da cintura daquela pele lisa, branca e vermelha ao mesmo tempo. Apertava e pensava: amo, amo, amo. Mil! Vezes! Amo!

Estavam ali porque namoravam e viajavam só pra viver esse amor. Com perfeição. Naquela manhã, só os dois, expulsaram a roupa do corpo e fizeram amor enlouquecedor na terra úmida. Um amor ardente. Tão intenso que ambos tremiam, lágrimas caiam dos olhos. Tudo era pura felicidade e paixão.

Voltou a si. Já ultrapassara a ponte e mal conseguia segurar a última cerveja. Só pensava nela. Pegou o telefone. Discou, mas errou o número. Pensou em desistir. Jogou o telefone no banco do passageiro e continuou o caminho. Dali a dez minutos estaria em casa.

Não era a primeira vez que fazia aquilo. Já ligara outras vezes. Todas de madrugada. Mas lhe faltavam palavras para falar qualquer coisa. Quando ouvia a voz dela, tudo parava. As mãos, os pés, a mente, a boca. Tudo. Nada saia de lugar algum. Então, ouvia um alô prosseguido de um timbre impaciente, que reclamava com curiosidade raivosa:

- Alô? Alô? O que é que você quer, hein? Por que não me deixa em paz? Não te devo nada! Devo nada a ninguém. Você por acaso é algum psicopata? Está tendo prazer com isso seu desgraçado? Larga esse telefone! Vira gente! Fala alguma coisa!

Aquele discurso era gozado. Ele entendia muito bem a reação. Era raiva, propositalmente, para não ser amor. Estavam separados há meses. Ele nunca a esquecera e ela... não se sabe. Mas aquela impaciência, para ele, soava como ansiedade. Ela também sofria, pensava ele, bem lá no fundo.

Continuou a dirigir após um sorriso no canto da boca. Ele adora aquele jeito impaciente, impulsivo e objetivo. Pegou o telefone outra vez. Decidiu que agora seria diferente. Jogou a garrafa de cerveja fora. Discou. O telefone deu a primeira chamada. A segunda. A terceira. Ela atendeu:

- Alô?

Silêncio...

- Olha aqui. A partir de amanhã meu telefone estará cortado. Vou mudar de número e colocar um bina aqui. Quero ver você continuar ligando! Seu louco! Maldito! Me deixa em paz! Ou então se mostra logo... covarde!

Ele sorriu de novo. Mas decidiu que daquela vez falaria. E falou.

- Desculpa. Eu te amo!

Foi tudo que conseguiu. Desligou. Sentiu uma leveza no peito. Tanta, que ele fez o retorno com o carro, parou num posto, comprou outra cerveja e tomou toda, escutando rádio e lembrando da beira do lago.

*Inspirado no post “Telefonema”, logo aqui embaixo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Telefonema

- Alô? Alô?
O silêncio do outro lado da linha era angustiante. Ela se perguntava quem poderia estar ligando àquela hora e não dizia uma palavra sequer. Não compreendia. Por que ligava se não queria falar nada?

- Alô? Alô?
A voz dela do outro lado da linha era reconfortante. Ele sentia um certo saudosismo ao ouvir seu timbre de voz. Uma mistura entre o rouco e o agudo, mas com uma entonação totalmente particular. Não queria dizer nada para não estragar aquele momento. Ouvi-la era o único prazer que tinha desde o dia em que ele acordou e resolveu partir.

- Olha aqui! Isso não é hora de ligar para os outros. Muito menos para passar trote. Se quer encher o saco, ligue pros seus amigos. Ou procure ajuda no CVV!
Decidira que precisava reagir. Não dava para agüentar aquilo. Já era a terceira noite seguida que acontecia a mesma coisa. E o pior: não conseguia dormir depois imaginando mil possibilidades para a ligação. Seria alguém precisando de socorro e desesperado discou números a esmo e caiu no dela? Seria alguém conhecido só querendo fazer alguma brincadeira? Seria ele?

- Olha aqui! Isso não é hora de ligar para os outros. Muito menos para passar trote. Se quer encher o saco, ligue pros seus amigos. Ou procure ajuda no CVV!
Ah, sim. O tom bravo, mandão, completamente imperativo. Que saudades sentia disso. Quanto não daria agora para ouvir uma de suas ordens. “Senta aqui!” “Dorme!” “Presta atenção no que eu estou falando!” Qualquer coisa valia. Até mesmo um “procure ajuda no CVV!”. Quase respondeu com um “Sim, paixão! Vou procurar agora...”, mas segurou-se. Afinal, ele tinha ido embora para não ter mais que obedecer a seus caprichos bobos. Desligou.


- Alô? Alô?O que é que você quer, hein? Por que não me deixa em paz? Não te devo nada! Devo nada a ninguém. Você por acaso é algum psicopata? Está tendo prazer com isso seu desgraçado? Larga esse telefone! Vira gente! Fala alguma coisa!
Ela já não agüentava mais. Uma semana de ligações e ela não tinha sequer uma pista que desse certeza de quem fosse o misterioso do telefone. Nem mesmo sabia se era um homem. Ela já estava para morrer de curiosidade. Era certo que essa era uma de suas maiores marcas. Não conseguia agüentar de um dia para o outro para saber alguma novidade. Surpresas nunca funcionavam com ela, sempre eram descobertas antes. E agora com essas ligações de madrugada, nem dormir conseguia mais. Antes, era depois do telefonema. Agora, antes. Ficava esperando, olhando os minutos passarem no relógio para ver que horas tocaria.

- Alô? Alô?O que é que você quer, hein? Por que não me deixa em paz? Não te devo nada! Devo nada a ninguém. Você por acaso é algum psicopata? Está tendo prazer com isso seu desgraçado? Larga esse telefone! Vira gente! Fala alguma coisa!
Cada noite que passava ele parecia estar mais perto dela. Relembrava vários momentos dos seus anos de amor. O primeiro beijo, a primeira transa, os presentes, as viagens, os passeios, as festas, as flores, as brigas, as reconciliações. Agora era tudo o que ele queria, uma reconciliação. Pensou em dizer alguma coisa. Segurou-se. Afinal, tinha ido embora porque não agüentava mais brigar no domingo, voltar na segunda. Brigar na terça, voltar na quarta. Desligou.

- Olha aqui. A partir de amanhã meu telefone estará cortado. Vou mudar de número e colocar um bina aqui. Quero ver você continuar ligando! Seu louco! Maldito! Me deixa em paz! Ou então se mostra logo... covarde!
Ela nunca faria aquilo que estava dizendo. Era só uma ameaça para ver se alguma voz vinha do outro lado. Cortar o telefone sem saber quem ligava não fazia parte dos seus planos. Ela precisava saber.

- Olha aqui. A partir de amanhã meu telefone estará cortado. Vou mudar de número e colocar um bina aqui. Quero ver você continuar ligando! Seu louco! Maldito! Me deixa em paz! Ou então se mostra logo... covarde!
Ele não podia perder aquele contato. Era tudo o que ele tinha. Era tudo o que o motivava a passar o dia correndo para chegar logo a madrugada e poder telefonar para ela. Ele precisava reagir, mesmo sabendo que ela nunca cortaria a linha sem saber quem estava falando. Mas ele também precisava falar o que vinha ensaiando.

- Desculpa. Eu te amo!
E desligou. Nem se lembrava mais porque tinha ido embora.

domingo, 18 de novembro de 2007

A carta

Olá,

Há algum tempo não o vejo. Queria poder te tocar. Fazê-lo sorrir e sujá-lo de sorvete como naquela época. Outro dia preparei um mousse de limão, que você adora. Lembrei de você. O pessoal todo estava aqui em casa. Percebi que minha mãe lembrava também. Perguntei a ela. Ela disse que sim, que pensava em você.

Viu como nos faz falta? Até hoje não entendo por que nos abandonou. Achei que tivesse memória curta, mas não tenho. Lembro de cada segundo ao seu lado. Ultimamente tenho ido muito a orla. Ainda não caminhei de mãos dadas com ninguém por lá. Não tenho coragem, embora guarde uma pontada de mágoa pelo que você fez. Se não tivesse feito isso, nada tinha acontecido.

Queria seu corpo aqui. Queria apertá-lo. Poder dar um nó que não desate jamais nós dois. Ah! seu corpo. Seus braços. Seu beijo. Sua boca. Nossa, que saudade! Nunca escrevi uma carta assim, pra ninguém. Seja em qualquer condição que estivéssemos hoje, não teria coragem de entregá-la. Se entregasse, com certeza não teria esse conteúdo.

Sabe, meu amor, esses meses sem você me foram de pouca valia, muito sofrimento e uma porção boa de maturidade. Cresci porque sofrer é o ensinamento dos ensinamentos. É nele que nos encontramos. É nele, por incrível que pareça, que buscamos forças pra recomeçar o que insistimos em afirmar que estava perdido. Aprendi que nada está perdido. Quem se perde somos nós.

Uni duas coisas: amor e sofrimento. Aliado a lembranças, vivia a oscilar entre sorrir e chorar. Até que da fome passei a fruta e da fruta a carne. Hoje me alimento bem. Sofro bem, também. Mas meu sofrimento não me ataca mais o corpo. Só a alma. Estou com as bochechas mais coradas. Até tomei banho de mar outro dia.

Sem mais delongas, meu amor. Quero que saiba, onde estiver, que tudo que senti permanece intacto. Que meu amor é um bálsamo inseparável. Você, que me foi tirado de forma tão cruel em dia tão simbólico como era seu aniversário, é o mais importante membro amputado do meu corpo.

E não penses que me revolto com aquela noite. Você me enganou, mas estava certo. Fazia o que mais gostava de fazer na vida: viver. E, se eu pudesse, aliás, me jogava na frente daquele carro para desviá-lo da sua rota natural. Você não se meteria em tão cruel acidente.

Eu não te esqueço. Sua falta está mais presente do que a batida do meu coração. Sua morte é mais viva do que o canto de um pássaro. E meu amor é tão forte como uma onda. Te amo como não sei o que, até não sei quando.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O amor-homem

Tudo bem que todo homem acha sempre aquela colega de trabalho uma gostosa. Que nós sempre torcemos o pescoço para ver a mulher que está passando do outro lado da rua – mesmo que a sua esteja ao seu lado. E também que sempre fantasiamos com as mais diversas deusas do universo feminino.

Mas é certo também que isso é, em 99% dos casos, apenas fantasia, atração física, paixão repentina. Amor, amor mesmo, é bem diferente quando pega o homem. Porque o cara quando gosta, aquele gostar de verdade, de amor mesmo, se entrega. E a entrega do sexo masculino, por mais que muitos insistam em negar, é muito maior que o das mulheres.

E isso acontece porque nós, quando amamos, somos sinceros e verdadeiros. A palavra amor não faz parte do vocabulário masculino, como do feminino. Não dizemos coisas do tipo: "Amei esse sapato!" ou "Amigo, te amo!" tão ao léu quanto as mulheres. O amor quando sai da boca de um homem é verdadeiro. Seja para uma amante, sua mãe, amigos.

Sei que com essa declaração várias pessoas vão vir dizer que eu sou um louco. Como posso dizer uma coisa dessas, se aquele cara que ontem dizia que te amava, hoje já está com outra. Mas acalmem-se. O amor é difícil, traiçoeiro. Todos se enganam com o amor. Afinal, quem consegue explicar o que ele realmente é?

E também não venham me dizer que só os homens falam que amam em um dia, e no outro já não amam mais. Quantos de vocês, amigos, já não foram iludidos por um sonoro "eu te amo" antes de dormir e acordaram no dia seguinte, sozinhos e abandonados? Sim, as palavras também são traiçoeiras, principalmente quando dizem A, enquanto o coração pensa B.

E é por isso que digo, agora às mulheres, que acreditem. Por mais que isso possa parecer um tanto cafajeste (e às vezes é). Mas acreditem quando um homem olha em seus olhos e diz que te ama. É sério. Nós sabemos bem as conseqüências que estas palavras podem trazer caso sejam ditas ao léu.

Também não nego que muitos fazem isso só para tirar proveito. Só para enganar um pobre e carente coraçãozinho feminino. Depois que conseguem sugar o que querem, somem como se tudo aquilo não tivesse existido. E a pobre moça fica lá, largada.

Mas acredite, você. Tenha certeza, pelo menos na palavra do Palavra. Porque se eu te disse, uma única vez que fosse, que te amo, é porque eu realmente amo. Para sempre.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O mistério da azaração

Azarar mulher é uma função complicada. Primeiro, não se pode ser clichê, muito menos falar muito. Encontrar a linha certa pra dar a bola dentro não é fácil. Justamente porque temos que escolher as palavras certas, na quantidade certa. Bem, muita gente diz: "Não precisa! Seja autêntico". Isso mesmo. É preciso ser autêntico para admitir que originalidade demais perturba.

Por isso, defendo um processo de conquista bem cauteloso. Ou seja, vá, mas vá com jeito. Depois cê pode falar merda, tirar meleca do nariz, fumar "unzinho" ou dar uma de doidão na frente dela. Sei lá. Mas no começo tudo deve ser como manda o figurino: devagar e sempre.

Claro que falo aqui de mulheres sérias. Caso vá para uma micareta (pelo que me falam é sinônimo de mulher e homens fáceis) o procedimento é diferente. Se não souber, sugiro que pegue uma aula com algum bombadinho. Não é difícil encontrar um deses em Brasília. Estão quase sempre sem camisa, andam em grupo, bebem vodka e falam "véi" a cada duas palavras. Mole, mole! Esses ai sabem pegar mulher de micareta.

O problema são as sérias. Ou, pelos menos, as que aparentam seriedade e são do tipo impenetráveis (no sentido retórico e não literal). Pois bem. Existem dois problemas graves, para um homem, na hora da conquista. O primeiro é gostar de quem se quer conquistar. O segundo é não saber paticamente nada sobre a figura em questão.

Gostar só dificulta. Ficamos com medo de falar errado ou coisas desagradáveis e fora de hora. Ou seja, estamos sempre cheios de dedos. Mas elas não podem perceber isso. Então, acabamos com duas preocupações: 1 – receio de falar merda. 2 – receio de, de tanto tentar não falar merda, parecermos muito artificiais.

A situação piora quando nada se sabe sobre a gatinha. Vamos chegar e falar o que? "Oi, como cê tá? Mora onde? Gosta de Strokes?". Pra dois adultos de, sei lá, 26 anos, isso parece patético. No caso dela falar pouco (e você também), desista. Nada vai sair dali. Então, obter algumas informações antes é melhor. Qualquer coisa. A conversar vai engatar a primeira e não demora muito pra conseguir as outras marchas.

Remeto-se a uma frase da banda O Teatro Mágico: "Os opostos se distraem e os dispostos se atraem". Pura verdade. Azarar mulher é realmente um exercício de transpiração, como tudo na vida. É preciso disposição. Mas das duas partes. Agora, como atiçar a vontade dela… ai só Deus sabe. Mas não se engane, existe alguma coisa além do orgânico que faz despertar a vontade (dele ou dela). Não é porque se é bom de papo ou bonitinho. Tem alguma coisa que ainda não se descobriu. Alguém sabe?

domingo, 7 de outubro de 2007

O Trem

Aquele não era um trem muito grande. Mas seus vagões eram suficientes para muita coisa. Suas viagens eram sempre muito agradáveis, apesar de algumas passarem por lugares um tanto quanto improváveis e até, por que não dizer, fora de rota.

Ainda assim, era um ótimo trem. Cada vagão era determinado pra uma atividade específica. O primeiro era o coração. Lá estavam alojados o motor e também o maquinista. Era dali que partiam todas as decisões sobre destinos, partidas e chegadas. Mais as chegadas, nem tanto as partidas.

Tinha ainda um vagão exclusivo para diversão. Jogos, brincadeiras, fantasias, histórias, piadas. Qualquer coisa relacionada ao prazer, tudo estava ali. No seguinte, estava o aconchego, o carinho, o descanso, a amizade, aquele sentimento de bem-estar.

Em outro vagão estava a responsabilidade, o bom senso. Era também o vagão do trabalho, da seriedade. Não era o mais atrativo aos passageiros, mas todos sabiam que era muito importante para compor aquela engrenagem.

Ali, podia-se viajar com calma, tranqüilidade e ao mesmo tempo ter muita diversão e situações inesperadas. Porém, acontecia que o maquinista andava triste, procurando um passageiro para viajar com ele. Já imaginou que triste é um vagão sem passageiro?

Os vagões estavam todos vazios. Ninguém para aproveitar tudo aquilo que a máquina e seu maquinista ofereciam. Sequer um passageiro para viajar pelos lugares mais distantes que o trem e a imaginação do maquinista poderiam levar.

E dessa maneira, o trem perde a força. E pára. E vai ficar ali, emperrado em um trilho qualquer esperando algum novo passageiro. Longe da última parada e sem saber qual a distância para a próxima. E o maquinista esperando o coração da máquina voltar a assobiar aquele alegre “piuííííí”.

domingo, 30 de setembro de 2007

O Cartão

A vida daquele rapaz eram só flores. Não que tudo estivesse sempre bem. Afinal, ele era um jovem comum que, como qualquer outra pessoa, tinha alegrias, tristezas, vitórias e decepções. Mas a vida dele era florida por conta de seu trabalho. Ele era entregador de uma floricultura. Passava o dia daqui pra lá, de lá pra cá entregando vasos, buquês e arranjos.

Mas, além das flores, o que ele gostava mesmo era de ver os rostos emocionados, surpresos e, vez ou outra, até tristes, ao receberem as flores e abrirem os cartões. Sim, os cartões. Essa era sua verdadeira paixão. Tão apaixonado era, que sempre lia os escritos antes de entregá-los, só para saber o que de tão bom havia ali. E ficava imaginando qual seria a reação de quem o recebesse. Afinal, ele nunca tinha mandado, tampouco recebido flores e, por isso, não fazia idéia do que vinha escrito naqueles pequenos pedaços de papel.

E, a partir disso, descobriu um novo mundo. Cheio de paixões, de palavras bonitas, de histórias de amor, poemas e promessas de uma vida cheia de aventuras e romances eternos. Vez ou outra alguns cartões vinham mais apimentados, com frases sobre noites de amor e corpos em chamas. Mas nada que o deixasse sem graça. Só não gostava de ler os cartões de pêsames. Esses eram demasiadamente tristes e sem graça.

Mas os de amor! Ah, como eram belos. E lendo, ele fantasiava como seria o dia em que mandaria seu primeiro buquê a uma linda e amada garota. Rosas vermelhas, copos de leite brancos, flores do campo, girassóis e junto um cartão cheio de palavras apaixonadas.

Guardava frases de um, retirava versos de outro e ia juntando tudo para, quando chegasse a sua vez pudesse escrever as palavras mais bonitas possíveis. Afinal, seu amor também seria o mais bonito possível.

Até o dia em que encontrou o melhor cartão da sua vida. Aquele em que não seria preciso retirar nenhuma palavra, letra, linha, ou qualquer coisa. Nem mesmo se houvesse qualquer tipo de erro ali. Fosse gramatical ou conceitual. Nada deveria ser mudado. O que ali estava escrito era, simplesmente, tudo o que ele gostaria de dizer para alguém. Mesmo que de forma tão inusitada.

De início ele estranhou bastante aquele presente. Um vaso com um cacto. Coisa mais feia era o tal do cacto. Pequeno, verde, espinhento, sem vida, sem alegria. Só aquela coisa minúscula, meio retorcida dentro do vasinho. Quem era o apaixonado que mandaria um cacto à apaixonada? Não poderiam ser flores de um casal, aquelas. Já estava pressentindo que ao abrir o cartão se decepcionaria com frases do tipo: “Felicidades pela nova casa”, “Parabéns pela promoção”, ou “Você é seco e sem vida como essa planta”.

Porém, naquele envelope ele descobriu uma das coisas mais impressionantes que tinha aprendido depois de tanto tempo trabalhando com as flores. O cartão dizia assim:

“Meu Deus, onde fui amarrar minha égua? Eu aqui esperando lindas flores em um dia especial. Esperando por um buquê de rosas, ou um arranjo de lírios, quem sabe até uma orquídea, mas não! Eu recebo justamente um cacto. Pequeno, seco, sem-graça. Por que é que eu fui arrumar um namorado tão estranho?, é o que você deve estar pensando nesse momento, não é?

Pois é, mas saiba você que o cacto é uma planta linda, que pode dar as flores mais bonitas que existem. E sabe por que são as mais bonitas?

Porque brotam justamente de onde ninguém espera. E o inesperado é sempre muito mais surpreendente. São mais bonitas porque ninguém acredita que saia, do meio de espinhos, algo tão singelo e delicado.

Porém, elas não brotam assim, de repente, sem mais nem menos. Elas precisam de cuidado, carinho, admiração atenção. Muita atenção para surgirem com toda sua beleza. E o que isso tem a ver com a gente?

Tem a ver porque é exatamente o que espero que aconteça conosco. Atenção, carinho, cuidado, admiração, respeito, amizade. Tudo isso para que nós sejamos como a flor do cacto. De onde todos esperam apenas a aspereza do espinho, surja a beleza da flor. Vem comigo?”


E ele chorou. E entregou as flores para aquela menina chorando. E chorou mais ainda ao ver o seu lindo sorriso. E foi embora ainda com lágrimas escorrendo pelo rosto, sonhando com o dia em que deixaria de ser apenas um cacto seco, para encontrar seu amor e ver brotar muitas e muitas flores.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A Ordem Natural das Coisas

Eles se conheceram, gostaram um do outro, apaixonaram-se e depois tudo virou amor, segundo ele. Para ela, não. Primeiro foi a paixão, depois conheceram-se, aí veio o gostar e por último o amor. E será que existe mesmo uma ordem para esse tipo de coisa?

Ele não dava o braço a torcer. Dizia ser impossível apaixonar-se por alguém sem antes conhecer a pessoa. “Como posso simplesmente olhar para alguém, sem saber nada dela. Nem mesmo seu nome. Não dá!”, pensava. Para ele, a paixão vinha com o conhecimento, a intimidade, a vida vivida dia-a-dia. Não existia amor à primeira vista.

Ela discordava. Jurava de pés juntos e a todos os santos que tinha se apaixonado por ele desde a primeira troca de olhar. “A paixão é assim. Acontece quando a gente menos espera, em um momento quando nem imaginamos que iríamos nos apaixonar”, defende. Era uma romântica inveterada, daquelas que sonhavam com o príncipe que viria a cavalo.

E quem poderia dizer que algum dos dois estava errado? Quem poderia estabelecer a ordem certa para a vida? Apresentação, gosto, paixão, amor. Amor, paixão, gosto, intimidade. Amizade, intimidade, paixão, amor. Alguém pode me definir o certo? Há mesmo uma fórmula para isso? Não dá para dizer que é um ciclo, como o da água que evapora, transforma-se em nuvem, cai em forma de chuva e volta a evaporar.

É certo que os dois não se entendiam. Um dizia que a ordem era essa e o outro dizia ser aquela. E nesse desentendimento os dois seguiam. Mas seguiam sabendo que não importava o que tinha vindo primeiro, se o ovo, ou a galinha. Para os dois, o que valia a pena era o amor que sentiam. Afinal, quem se importava com a seqüência dos acontecimentos se no fim tudo tinha dado certo?

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Doeu

No fogo ou na água, o amor que queimava aquela moça era sempre algo interessante de se admirar. Conservava uma cara de paisagem. O mundo da lua lhe visitava sem que ela tirasse os pés do chão ou movesse os olhos ao redor, para olhar o movimento dos carros, dos pássaros, das pessoas que ali sorriam, choravam e amavam.

Nada atraía a doce e romântica-jovem-dos-cabelos-loiros mais que o seu amado. Às 18h, sempre, sentava num banco, ao lado de uma ávore esculhambada pela seca e esperava. Minutos depois, saía de lá. Mãos dadas, passos sincronizados, sorriso no rosto e uma alma leve, como formando em dia de colação.

O coração que agora ardia, ardia pelo tanto que já doeu. Aquela pequena nunca encontrara alguém que prestasse. Que a tratasse com dignidade e lhe desse esperança de que dali sairia um lance que a fizesse bater aos mãos para os pais e dizer que agora cuidaria da sua vida. Via naquele bom homem um ser notadamente ideal. Ele concordava e respondia com mais amor.

O problema é que amor demais por vezes ultrapassa a perigosa linha que separa a razão romântica da obsessão. No começo, tudo era lindo. Do meio pro fim, nem tanto. As crises de ciúmes que ele deflagrava corroíam o sentimento, embora nunca questionassem a validade daquela relação. Amar, para aquela menina loira, de olhos azuis e traços mal feitos, importava, até debaixo de crises.

Mas com um tempo tudo foi mudando. Ele tornou-se agressivo. A fez mudar de banco, porque, onde geralmente o esperava, passavam rapazes da faculdade abanando a mão ou parando pra trocar uma idéia qualquer. Um dia, chegou e a viu ao lado de um amigo. Ambos procuravam um livro dentro da mochila, de pé, em frente ao tal banco. O namorado obcecado não pensou duas vezes. Partiu pra cima do jovem e quebrou-lhe dois dentes com um soco certeiro que rasgou seu punho.

Mostras como essa são até simples perto de todas as maledicências que já cometera com a namorada. Quando completaram dois anos, ela decidiu que não aguentaria viver mais um dia naquele inferno. Agora, ardia no fogo da angústia, do medo e da impotência.

Então chegaram em casa numa noite qualquer e ela chamou o rapaz para sentar e explicou a situação. Ao final, pediu que fosse embora para nunca mais voltar. Ele sequer se ajoelhou para implorar perdão e dizer que mudaria. Afinal, já fizera isso umas três vezes e não moveu uma palha após o perdão. Então, fechou a cara com uma tristeza que surgiu de dentro do peito e foi embora.

Mas voltou no outro dia, para ser mal recebido e outra vez rejeitado. No segundo dia também apareceu e passou a vir todas as tardes. Foi renegado em todas as ocasiões. Desistiu e, no décimo dia, sequestrou a menina na saída da faculdade. Colocou-a dentro de um carro e a levou pra longe.

Parou num terreno qualquer, jogou-a no chão e começou a desfiar xingamentos enquanto tirava o cinto para baixar as calças. Depois do último tapa, que sujou sua mão com o sangue da boca e nariz da ex-namorada, deitou por cima dela, abriu suas pernas e penetrou com uma violência que até então não combinava com a peculiar delicadeza. Ficaram ali, os dois, por uns 10 minutos. Ela desmaiou. Ele foi embora, mas deixou um bilhete: “Para não me ver nunca mais, basta ficar calada”.

Momentos depois, o garoto da mochila encontra a amiga jogada no chão. Ele a havia seguido, porque viu um homem encapuzado, de carro estranho, levá-la de perto da faculdade. Ele se aproxima e pergunta, assustado: “Quem foi? Quem foi?”. Ela amassa o bilhete rapidamente, esconde na palma e responde: “Não sei. Ele não tirou o capuz”. O rapaz insiste em levá-la para o hospital. As sirenes da polícia estão cada vez mais próximas, atendendo ao chamado do colega. “Não! Me leve pra casa. Eu só quer ir pra casa”. E os dois, se escondendo da polícia, partiram em silêncio. Ela, de cabeça baixa, via as lágrimas pingarem o chão e sentia a certeza de que jamais amaria alguém.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Somos Todos Drogados

O maior vício do ser humano é outro ser humano. Nenhuma substância pode ser mais entorpecente do que aquela por quem se tem um desejo mais forte que sua própria força. E para esse mal não há sequer uma clínica, ou tratamento capaz de evitar as tão dolorosas crises de abstinência.

Você não vai escapar dessa situação. Não pense que estou falando apenas de paixão, e você como o maior dos insensíveis acha que jamais irá se apaixonar. Não pense como pensam as mães dos jovens que começam fumando maconha e acabam morrendo de overdose de heroína: “Comigo não vai acontecer”. Não pense.

Pois estamos todos sujeitos a ficarmos viciados em alguém. Seja um amor juvenil, um amigo para toda a vida, ou um parente próximo. Você, sem dúvida, ainda não percebeu, mas é viciado em alguém. Um amigo, mãe, pai, irmãos. Qualquer um deles pode ser a sua droga, a sua dor, a sua dependência, o seu medo de perda. E também não vá achando que agora que acordou para o problema, conseguirá se livrar da situação. Não. Não é tão simples.

Sabe aquele amigo que por mais que você se afaste, sempre volta? Você é a droga dele e, muito provavelmente, ele também é a sua. E mesmo com muita tentativa, não vai ser agora que sumirão das vidas um do outro, achando que estarão livres do vício.

E por que não a sua mãe? Mesmo grande, independente, de barba na cara, você acha que conseguiu se desvencilhar dela? Jamais. As mães são drogas eternas e não fazem tanto mal. Assim como a cafeína. Se você largar, terá dor de cabeça.

O PIOR – Como já disse, não existe tratamento para a crise de abstinência, nesse caso, também chamada de saudade. Quando você não tem por perto a sua droga, dá uma dor danada. É uma falta que se sente, como se faltasse parte de você. É uma falta de si mesmo. Uma ausência do outro, que se traduz em uma perda de você.

A droga do amor, companheiro, é como respirar. Não dá para viver sem. Não dá. E se você tenta, é também como tentar ficar sem respirar. Dá para segurar uns segundos; alguns, seguram por minutos. Mas o instinto de sobrevivência fala mais alto e você acaba soltando a respiração. E volta a encher os pulmões de ar.

Pois quando você pensa que pode escapar do vício da paixão, ele vem e te acerta bem no meio do peito com a danada da saudade. E você luta para não ir atrás da droga. Prende a respiração. Consegue por pouco tempo e logo depois, volta a encher o peito de paixão.

Mas você, insensível. Você, intocável. Você, inapaixonável (existe este termo?). Você não saberá o que é o pior do vício. Difícil dizer se isso é bom, ou ruim. Mas é fato, que você não saberá. Você não sentirá o que é perder a droga mais gostosa de se usar. Aquela que “te dá onda” só de pensar. Ou ouvir, cheirar, tomar, sentir, possuir.


Essa abstinência-saudade, caro amigo, você nunca sentirá. E insisto em dizer que não sei se te digo isso com um sorriso, ou com uma lágrima no rosto. Mas dessa crise, que te faz chorar, te faz enlouquecer e te faz até pensar em usar outras drogas, você não provará. Porque só um grande amor perdido é capaz de fazer com que alguém sinta a verdadeira dor da saudade. Essa maldita saudade.

domingo, 26 de agosto de 2007

Perto demais

Aquele espaço realmente não era apropriado para tal loucura. Ele chegou primeiro. Escolheu o assento no canto, longe da passagem de olhos curiosos. Longe de conhecidos, próximos, longe da vida que insistia em sufocá-lo e indicá-lo descaminhos, de amor, sobreturo. Ficou ali uns 15 minutos. Ela não chegava. A sala já estava escura. O trailler começava. Um pouco vazia, aquela sessão seria ótima. Mas não sem ela ao seu lado.

Aguardou mais uns cinco minutos. Julia Roberts encontrar-se com Jude Law. Ele precisava de fotos. E ela precisava ganhar dinheiro as tirando e cobrando por elas. As cenas de Perto Demais pouco importavam. Só incomodava mesmo aquela ausência, sentida na pele e na alma por muitos dias, que agora se fazia latente e chata.

Antes de sair de casa, ele avisou: minha mulher estará fora, na casa da mãe. Disse que vou ao cinema, já que não faço isso há um tempão. Hoje é um bom dia para nos encontrar-mos. Ela concordou. Avisou que seu marido precisou fazer uma viagem rápida, de um dia, e também iria ao cinema e ao seu encontro.

O problema é que são casados, vivem numa cidade pequena e correm sério risco de serem pegos uma ou outra hora. Combinaram então assim: ele chegaria primeiro, sentaria em um assento qualquer e a aguardaria. Ela teria uma chegada mais discreta. Entraria na sala quando as luzes já tivessem apagado e o filme começado. Sentaria despretenciosamente ao seu lado, como se estivesse ali um desconhecido.

Mas não combinaram, entretanto, como um acharia o outro. Ele estava na grande sala, esperando por ela. Mas só as luzes da tela e o brilho dos atores iluminavam as dezenas de poltronas. E isso não bastava. Principalmente em se tratando de um filme que fere a ilusão do amor eterno e banaliza a traição, inserindo-a no cotidiano das pessoas sem tomar conhecimento de que alguém ainda acredita que pode ficar ao lado de outra pela vida toda, sem traições ou novas paixões.

Tudo baboseira. Eles próprios não poderiam acreditar no amor eterno. Por seus respectivos, o amor já diminuira e seria facilmente assassinado. Mas sentiam que com eles era diferente. Faltava apenas tempo e espaço. Não tinham isso. Eis ai a razão do encontro no cinema, local público e perigoso. Queriam eles ter um dia de namorados, andar de mãos dadas. Queriam eles abandonar as suas famílias e se aventurar no novo. Faltava, no entanto, coragem de destruir o que demoraram para construir e de recomeçar. Não conseguiam isso e viviam de aperitivos.

15 minutos de filme. Nada dela. Alguma coisa poderia ter acontecido. Ele resolveu olhar para frente, acreditar que ela não viria e tentar conter a frustração. Começou a entender a história. Por um momento, decifrou todo o enredo e não gostou nada do que lhe foi revelado. A confusão amorosa ali descrita é, desesperadamente, parecida com o que ele vivia naquele momento.

Misturou-se então um sentimento de culpa, apego, saudade, alegria e tristeza. Sua vida não estava boa. A dela também não. Sem querer, uma lágrima desceu do canto do seu olho, percorrendo a face até parar no seu lábio. No filme, em sua frente, Jude Law chorava a perda de um amor que só complicou sua vida.

Ele fechou os olhos, apertando para conter mais lágrimas que se anunciavam e sentiu uma mão macia tocar-lhe perto da testa e descer pelo rosto, seguindo o rastro de seu choro. Atravessou a face e, molhada, a mesma mão deitou em seu ombro, enxugando-se em sua camisa. Era ela. Estava na poltrona de trás. Ele pegou sua mão e apertou.

Estavam ali, fisicamente distante para namorados em pleno cinema. Mas, envoltos em amor e limitados pela vida, sentiam-se perto demais. E passaram o resto da sessão de mãos atadas, atados a dúvidas, culpa, medo e uma enorme felicidade.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

REC

Ela maquiava-se sentada em frente ao espelho. Primeiro, uma base para esconder algumas imperfeições no rosto. As olheiras, uma mancha de sol no nariz e uma espinha que insistia em aparecer no canto da boca.

Veio o batom. Uma cor suave, quase imperceptível. Depois o gloss para dar brilho. O pincel acariciava levemente seus lábios num vai e vem ritmado. Pinçou, então, as sobrancelhas. Os fios mais rebeldes foram embora deixando um fino rastro de pelos. Passou, por último, o rímel nos cílios.

O espelho observava pacientemente cada movimento. E quando digo que observava, é porque até mesmo o reflexo dela ficou paralisado com aquela cena, tamanha beleza e delicadeza contida nos gestos daquela moça.

Tirou a toalha da cabeça e deixou cair sobre os ombros os cabelos, ainda um pouco molhados. Negros, lisos, leves. Parecia uma propaganda de xampu. Penteou-os com cuidado. Fio a fio, cada um recebeu o carinho da escova.

Levantou-se da cadeira. Nua. O espelho quase se despedaçou. Não porque fosse feia, muito pelo contrário. Mas é que se fosse possível a um espelho ter sentimentos, aquele iria, com certeza, ser quebrado. Afinal, como vocês se sentiriam se pudessem, como ele, vê-la e refleti-la, mas não pudessem toca-la? Morreriam, não? Pois é, foi o que quis aquele pobre espelho: virar cacos.

Vestiu-se lentamente. Primeiro a calcinha, depois o sutiã e por último o vestido. Era discreto, na cor preta, daqueles que em dias de ventania ficaria esvoaçante. Ainda realçava, no decote em formato de V, os belos seios daquela moça.

Deu uma última volta para conferir se estava tudo em ordem. Retocou o rímel nos olhos. Ouviu a buzina tocando lá em baixo. Calçou as sandálias, apagou as luzes e saiu.

O espelho passou a refletir apenas a escuridão. E se, mais uma vez, fosse possível a um espelho ter e expressar sentimentos, com certeza veríamos lágrimas de tristeza escorrendo de seus olhos. Pobre espelho. Pode ver, pode refletir, mas não faz nada além disso. Se ninguém estiver em sua frente, não tem vida. Não tem memória, nada.

Essa é a vantagem de ser uma máquina filmadora. Mesmo velha, encostada em um canto da estante no canto do quarto, ainda posso gravar cada belo momento dessa vida. E depois de gravado, repriso por quantas vezes quiser.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Crise de Ciúmes

- E daí? Eu não quero saber desse nhénhénhém aí, não!
- E daí que isso é importante para mim. E eu não vou abrir mão disso.
- Pois saiba que, desse jeito, você é quem vai sair perdendo.
- Quem te disse isso? Por que você acha que eu vou perder alguma coisa? Se quer saber, eu penso exatamente o contrário. Acho que estou é ganhando. Perderia se agisse como você quer.
- O que você não percebe é que vai perder a mim.
- Perder você? Por quê?
- Porque já disse que não quero saber dessa sua historinha aí com esse cara.
- “Esse cara”? Presta atenção! Olha só de quem você está falando.
- É “esse cara” mesmo! Você já está toda amiguinha dele e eu não gosto disso.
- Olha, eu não vou nem responder...
- Isso. Não responde mesmo. Ignora. Finge que não tem nada acontecendo. Deixa ele cheio de gracinhas aí com você.
- Você é que não vê o tamanho do absurdo que você está falando.
- Absurdo? Você acha que eu estou falando absurdo? Absurdo é você ficar cheia de graça para esse cara. Ainda ri das coisas que ele fala. Concorda. Faz o que ele diz. Conta novidades, como se ele fosse seu melhor amigo.
- E se ele for o meu melhor amigo? Ou vier a ser? Você é que não consegue entender isso.
- Se ele virar seu melhor amigo eu deixo de ser seu namorado.
- Isso é uma ameaça? Não prometa coisas que você não vai poder cumprir depois, hein? Eu ainda não me esqueci daquela noite em que você prometeu uma viagem de navio e até hoje não ouvi falar nem do bote salva-vidas.
- É uma ameaça sim! Aliás, mais que uma ameaça. É uma certeza.
- E por que você está com tanta raiva dele assim? O que ele fez pra você? Você nunca nem falou com ele. Só o conhece de vista. Ta com medo de quê?
- Eu sei do que um homem é capaz. E é mais do que lógico que ele é apaixonado por você.
- E daí? Não é por isso que eu vou ser apaixonada por ele... você está com medo dele, ou de mim?
- Dele, lógico...
- Certeza?
- Claro!
- Não parece.
- Não tenho razão para ter medo de você.
- E de você?
- Como assim?
- Acho que você está com medo de você mesmo. De não dar mais conta do recado aqui.
- Você está louca? Olha o absurdo que você está falando!
- Absurdo é você ter ciúmes do meu personal trainer. Ainda mais de um personal gay...
- Gay?
- É, gay. Aliás, ele te acha uma loucura... quem tinha que ter ciúmes era eu!

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Sob domínio da bala

O Ford Ka tinha uma semana. Andava por todas as festas da cidade. Levava amigos e mulheres. Mas, sobretudo, amigos solteiros à procura de farra. O haviam comprado em algumas dezenas de prestações. Terminariam de pagá-lo só dali a anos. Mas nem precisou. O carro morreu antes, depois que o rapaz perdeu a noção e, o carango, o sentido e a capacitade de transitar por ai.

Numa das últimas noites que Marcelão, como era chamado, dirigia o carro, foi atacado de lado por um Escorte velho, caindo aos pedaços. A batida parou o Kazinho e fincou suas rodas no chão. Arrebentou a lateral e quebrou o eixo. Uma fatalidade. Parou o veículo, desceu e lamentou o ocorrido. O cara do Escorte fez barberagem, mas se sentia o dono da razão.

- Como é que tu anda no meio da pista, seu louco?, gritou.
- Ando no meio da pista é o caralho! Eu só fiz o balão e tu te meteu no meio, respondeu Marcelo.

O carro atacante quase se despedaça todo. Era velho demais. Marcelo, impaciente, queria resolver logo tudo e seguir pra festa. Estava puto porque, 30 segundos antes de fazer o balão, tinha tomando uma bala pra seguir em frente a noite toda. Ele e o amigo que estava do seu lado. Os dois queriam chegar na boate no clima, exaltados com a droga, novidade na época.

O problema é que “o filho da puta” do Escorte continuava achando que voava na razão e insistiu em chamar a polícia. O amigo do Celão tentou demovê-lo.

- Rapaz, não precisa. Nosso carro nem sai mais do lugar. Vamos embora e depois a gente resolve isso.
- Depois nada. Vamos fazer a perícia e ver quem está certo. Você andava no meio das duas pistas. Não devia fazer isso.

O cara parecia mais louco que os dois componentes do Ford Ka juntos. Lógico que ele estava errado. Mas insistia na tese de que detinha toda e qualquer preferência ao entrar naquele balão. Coisa de maluco que transita na cidade uma hora da matina.

Quando a polícia chegou, uns 10 minutos depois do acontecido, os corpos de Celão e seu amigo já se movimentavam involuntariamente. Os dois pés despisavam o chão com frenesi, pensavam no trance e davam uns pulinhos sem querer. Mas ainda tinham que conversar com a polícia, sob efeito do êxtase.

Enquanto o maluco do Escorte conversava com o guarda, tentando convencê-lo de que ele é que estava certo, os dois amigos pensavam na boate, nas meninas e no que seria daquela lombra, recém chegada em suas respectivas mentes. Estavam no lugar errado, com as pessoas erradas e fazendo as coisas erradas. Só quando escutaram um grito do outro lado da pista é que perceberam que ainda tinham função mais importante do que curtir um trance. “Ei, vocês! Venham aqui, por gentileza!”, gritou um dos canas.

Os amigos ficaram na dúvida. Um jogou para o outro a responsabilidade de falar com o guarda. “Vai tu!”. “Não, vai tu”. “Eu não vou!”. E enfim decidiram: “Então vamos os dois, porra!”.

Chegaram juntos e começaram o discurso. Enquanto um falava, o outro mexia as pernas e começava a rir. Ria baixo, de rosto virado, para que ninguém percebesse. Até que Celão, que falava com o guarda, percebeu a graça provocada pela bala e não se conteve.

- Seu guarda, precisamos ir. Não temos condições de ficar aqui, disse, sorrindo.
- Por quê?
- Porque esse carro é do meu irmão. Eu peguei escondido e agora tenho que ir embora, mentiu.
- E qual é a graça?
- Porque esse palhaço vive fazendo merda, desconversou, apontando para o amigo.

E iniciaram uma sessão de gargalhadas que assustou os três guardas. Pararam uns dois minutos depois, quando os canas iniciaram uma revista profunda no Kazinho, super desconfiados.

Sorte que não encontraram nada. Já tinham fumado o baseado da noite e tomado as balas.

- Oha, a perícia tá feita, mas vocês terão que tirar esse carro daqui.
- Mas ele não anda seu guarda.
- Então empurrem até aquele estacionamento ali e aguardem o guicho, disse um dos canas, louco pra ir embora.
- Tá.

Todo mundo tirou o time. Só ficaram os dois, loucos de bala e a fim de curtir a noite forte. Resolveram então deixar o carro lá, de vidros quebrados e porta entreaberta. Pegaram um taxi e foram pra boate. Curtiram o final do efeito da droga. Lá conseguiram mais. Amanhaceram dançando, depois foram beber na praia e ficaram por lá até o meio do dia. Só então foram pra casa. Dormiram o domingão inteiro. Esqueceram do carro.

Quando lembraram, não havia mais carro. Apenas uma lata, sem banco, sem para-choques, sem som, sem vidros e sem várias partes do motor.

Celão tentava lembrar da noite inteira. Recapitulou os fatos e pôs os pés no chão. Lembrou que a vida é difícil e começou a pensar numa boa desculpa para dar aos pais, que lhe deram o carro de presente, no maior esforço, financiado a perder de vista.

O carro acabou e meus problemas começaram, pensou.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Matemática

Divisão, pelo menos até aquele momento, era apenas uma operação matemática. Podia ser simples, como dividir dez por cinco, ou um pouco mais complexa como sete por quatro. Mas enfim, nada que uma calculadora não resolvesse, ainda mais com toda essa tecnologia disponível ao alcance das mãos. Era assim que ela pensava. Principalmente ela, que sempre teve facilidade com números. Aos sete anos já sabia de cor e salteado a tabuada.

E essa era a única idéia que ela tinha sobre a divisão. Puramente matemático, nada relacionado às emoções. O mais próximo que o ato de dividir tinha chegado ao seu coração foi uma vez em que, ainda pequena, teve de repartir a merenda e o chocolate com a colega de sala que não tinha lanche.

Mas ter o próprio coração dividido era algo que ela não imaginava. Pelo menos não até aquela tarde de domingo. Um dia um tanto esquisito, é verdade. Aliás, um típico dia brasiliense. O frio seco e cortante pela manhã, o sol que maltrata ao meio-dia e a tarde cinzenta, ora quente, ora fria. Sensações estas que pareciam com as do seu coração e barriga ao ver, no mesmo local, o seu atual-ex amor e o seu ex-atual amor.

Confuso? Sim, muito confuso. Na verdade, nem ela mesma entendia quem era o quê. É fato que naquele dia nenhum dos dois era oficialmente o seu namorado. Ambos eram ex. Mas também era certo que ela não tinha deixado de amá-los. E por isso sentia-se dividida. E por isso o coração quente e a barriga gelada.

Não sabia a quem escolher. Não tinha certeza se queria a altura, a pele negra, os cabelos trançados, a voz grossa e os olhos claros que lhe traziam calma, serenidade e muitos sorrisos; ou se preferia a força, a pele branca, os cabelos lisos e dourados, o tom de certeza, confiança e clareza nas palavras, apesar da loucura de garoto rebelde.

É certo que ela não sabia o que queria. Um tinha sido seu companheiro por muito tempo, vivido muitos momentos e passado por muitos problemas. O fim do romance foi calmo, mas, ao mesmo tempo, conturbado. Muitas coisas ditas da boca pra fora. Muitas outras não ditas. Raiva, choro, saudade, boas e más lembranças, abraços, pedidos, sentimentos, desejos, indagações.

O segundo era mais recente. Uma paixão que apareceu do nada e foi ao tudo em pouco tempo. Mas depois retornou ao nada e novamente chegou ao tudo e nesse efeito gangorra acabou se perdendo. Foi menos traumático, se é que se pode dizer que um fim de relacionamento não é trauma. Mas a confiança daquele rapaz e a paz que ele transmitia fizeram com que as coisas fossem menos dolorosas.

E ela, ali, entre um e outro, sentindo-se como um solitário ipê em meio ao gramado da Esplanada dos Ministérios. Sem nenhuma calculadora que pudesse ajudá-la a resolver aquela operação. Por que será que ainda não inventaram uma fórmula para resolver as equações do coração?

Bem, ela não sabia. E ali, perdida entre os dois. Disputada feito cabo de guerra, preferiu relaxar, curtir a música e observar o sol se pondo atrás da Torre de TV. Afinal, na escola, quando ela não conseguia resolver o exercício bastava ir ao fim do livro e encontrar todas as respostas. Ela então, esperaria chegar o fim do seu livro de amor, e com ele a resposta que tanto procurava.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Último dia

A chave que tocava o copo soava como um sino. A vodka já ultrapassava o efeito máximo. Ele passara da tristeza pra euforia e agora permeava a disolação. Vivia num mundo de bêbados. Todos com um copo na mão a procurar um parceiro. Era triste porque era tímido. Era tímido porque se achava diferente. E se achava diferente porque era gay. O mundo na porra desse lugar não me cabe, dizia, atacando a pequena cidade onde vivia.

Pessoas o olhavam de lado, com desprezo. Tudo normal para uma terra conservadora. Mas aquilo o incomodava. Batia no fundo da alma, perfurando as idéias. Por isso, tentara se matar duas vezes. A primeira com remédios. A segunda, enforcado. Amarrou um lençol na base do telhado, subiu numa escada e sentiu um leve aperto no pescoço. Mas doeu mesmo a bunda e a cabeça. O telhado cedeu e ele caiu seco. Um pedaço de telha terminou de quebrar bem na sua testa, embaralhando ainda mais as idéias.

A tentativa frustrada o fez largar o trabalho na mercearia. Resolveu faltar e foi pro bar. Decidiu que nada melhor na vida do que beber triste. Foi o que fez, durante sete horas seguidas. Quando não aguentar mais a disolação e a cabeça não conseguia mais martelar pensamentos, parou e começou a perceber o movimento da chave contra o copo de vodka.

Passou uns 15 minutos de cabeça baixa. Tudo rodava. Quando resolveu levantar a cabeça pra pedir mais uma, alguém puxou a cadeira e sentou.

- Oi.
- Como vai?
- Eu? Bem. Mas você parece querer morrer.
- Já tive vontade maior.
- Olha, rapaz, não quero te fazer feliz não, mas você não está sozinho nessa.

O homem via dois jovens de olhos puxados na sua frente. Usava uma camisa quadriculada, com os primeiros botões abertos. Dava pra se ver os pelos ainda tímidos saindo do peito. “Não enche”, respondeu. “Sou veado mas não preciso de consolo”.

Precisava sim. E o rapaz do corpo atlético e camisa quadriculada pegou sua mão, apertou: “Você tá sozinho, sua bicha, não vem bancar o forte que sei que és mais frágil que capim seco. Estou aqui pra ficar junto de você e lutar contra a merda desse lugar”.

Juntos, tomaram mais três doses e saíram do bar. Um não entendia o outro. O suicida pensava pouco. Só admitia que a vida é uma merda porque não é previsível. Sentia naquele momento mais uma oportunidade pra odiar tudo que passou. Tinha em sua frente a surpresa da noite, mas não gostou da forma como tudo aconteceu. Talvez porque estivesse bêbado. Mesmo assim, se sentia atraído pela firmeza daquele garoto. E imaginou que poderia se apaixonar e viver melhor.

Chegaram então numa casa abandonada. Encostaram na parede e a iniciativa veio do mais novo. Levou a mão por entre as coxas do outro e apertou forte. Aquele que era triste agora agarrava o pescoço do estranho para dar-lhe com a língua em seus dentes, apertar-lhe a bunda para, em seguida, baixar as calças.

O jovem tirou a camisa, deu uma volta em seu pescoço e perguntou: “Lembra-se do Jonas?”. Repetiu a pergunta pela segunda vez e não houve resposta. “Lembra-se do Jonas?”, repetiu, mais alto e mais agressivo. No alto da excitação, a resposta saiu como um gozo. “Claro, aquele garoto é ótimo. Foi pra você também?”.

O garoto era irmão do jovem José, recém chegado na cidade. “Ele é bom pra mim. Mas eu sou melhor pra ele”. Em poucos segundos aquele que parecia gay e aventureiro tirou uma faca de cozinha da meia e enfiou na barriga do funcionário da mercearia, pressionando e puxando para cima, num movimento vertical e fatal. Tudo foi muito rápido. A parede respingada de sangue só apareceu quando ele caiu aos seus pés, de joelhos, com a camisa quadriculada ainda no pescoço.

Olhou de baixo pra cima e sentiu a faca perfurar suas costas. Estava pronto pra morrer. Entendeu que tudo fora uma armação. Um truque bom, cujo final feliz era a morte. Sorriu e disse as últimas palavras: “Obrigado, obrigado”. Morreu com a lembrança do pobre menino que assediava na saída da escola por vários dias e violentara quando, enfim, perdeu as estribeiras. Caiu aliviado. Entregou-se para morte, como queria. E ainda com o próprio sangue nas mãos.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Na escuridão

Ela se sentia meio perdida. Deitada em sua cama, no escuro, olhando para o teto. Sentia falta de alguma coisa. E não pense você que era alguém, não. Era uma coisa mesmo. Um objeto, algo com que se divertir antes de o sono chegar. Um livro.

Foi acostumada, desde pequena, a dormir sempre acompanhada pelas letras. Quando criança, o pai lia para ela as lindas histórias de princesas, castelos, dragões e fadas que floreavam seus sonhos. Depois, já alfabetizada e, portanto, independente no mundo das palavras passou a dormir, inicialmente, acompanhada dos gibis. Mônica, Cascão e Cebolinha traziam aventuras aparentemente bobas, mas que sempre foram vivenciadas como se ela mesma fizesse parte da turma da rua de baixo.

Mais tarde, na pré-adolescência, os romances de jovens meninas e rapazes a encantavam e faziam sonhar com o seu príncipe encantado. Não aquele do cavalo branco, como nas histórias de criança. Mas sim o mais bonito do colégio, que jogava futebol e tirava boas notas, que lhe levaria para tomar sorvete na praça e ofereceria uma flor roubada do jardim.

Vieram então os dramas adultos e com eles outros romances, aventuras, policiais e por que não – mas só de vez em quando – algumas daquelas belas histórias juvenis que traziam boas recordações. Mas é fato que seu encantamento pelos livros só cresceu. Leituras mais densas, mais carregadas de detalhes, suspense e um pouco de erotismo.

Porém, agora, ela estava ali. Deitada, sozinha na escuridão. A leitura não lhe fazia companhia. Ela sabia o por que de sua solidão literária e, por isso mesmo, não conseguia acreditar que tenha passado tantas noites insones por um detalhe tão bobo: o abajur queimado.

Há mais de mês, a sua fonte de luz noturna tinha estragado. Já era tarde da madrugada, ela já havia adormecido, como de costume, com o livro pousado em seu peito. Acordou com o cheiro forte de queimado. Saía fumaça da base do abajur. Nada que necessitasse de um extintor, mas o suficiente para assustar alguém que já sonhava com viagens pelos mares do sul a bordo de um navio pirata. Bastou tirar o aparelho da tomada e resolveu-se o problema.

Porém, outro problema foi gerado com isso. Surgiu, então, a insônia, a saudade dos livros, das personagens, dos dilemas e dos amores que recheavam as histórias. Um abajur queimado, a razão de tudo. E ela não tomava uma atitude para consertá-lo. Parecia até que tinha deixado de gostar das histórias. Para ela, pior não era perder o sono, mas sim o ritmo dos contos, o fio da meada dos acontecimentos.

Ligar a luz do quarto era algo impensável. Pois, quando sentisse sono, teria que se levantar para apagá-la e a preguiça não permitia isso. Por isso apreciava tanto o abajur, ao alcance de sua mão. Bastava esticar o braço para alcançar o interruptor e criar o breu necessário para seus sonhos literários.

Por isso, enfim, ela foi ao eletricista. Pousou o abajur sobre o balcão e disse: “Moço, meu abajur queimou”. E naquela mesma noite, ela voltou a dormir. Um sono profundo, repleto de fantasias que só os livros podem nos trazer.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

O marido e a copiadora

A morte se anunciava antes mesmo que ele pudesse levar a mão direita à cintura dela. Fingiu um acidente. Mas acabou despertando o interesse de meio mundo de curiosos que naquela sala estavam. A desconfiança se fez presente não porque aquele homem era por inteiro um atravessador de casamentos. Tinha até um nobre estilo. Andava bem aprumado, discurso alinhado e educação de granfino. Mas, por seu andar de malandro, era o mais comentado no cafezinho da repartição. Sobretudo por homens casados, que a todo custo queriam encher-lhe a cara de bolachas.

A sorte de Lúcio da Anunciação era que Maria Joaquina, a moça da cintura dura e rebolosa, não estava nem perto do marido. O homem, trabalhador, andava pelo outro lado da cidade. Mexia com corretagem e vivia rondando clientes que, achava ele, tinham dinheiro. Mesmo assim, às 18h10, sempre ao final do expediente, lá estava ele, de olhos esbugalhados, olhando ao redor com semblante de general, pegando os braços da mulher e subindo no ônibus.

Lúcio da Anunciação via sempre aquela cena com sarcasmo. Comentava pelos corredores: “Homem bravo é homem corno!”. Talvez no fundo de seu sentido adivinhava que aquele senhor de quarenta anos – e que ganhava mais 10 com o olhar alheio – desconfiava da mulher dia e noite. Principalmente no final da tarde, quando aquele contínuo atravessava seu caminho na saída da repartição, como se viesse do mesmo canto que sua esposa.

O pior é que de onde surgia ela, surgia ele. Naquele departamento de pouco mais de 20 funcionários, o grupo resolveu acabar o expediente 20 minutos antes do normal. Por isso, às 17h40 todos tomavam o rumo de casa. Exceto Lúcio e Joaquina. Estes fingiam que dobravam a esquina, mas voltavam para as dependências da repartição. Vazio, o lugar provocava-lhes arrepios na espinha. E quando se tocavam, as abotoaduras pareciam ganhar vida e libertavam justo o que deveriam prender.

Passavam, então, os dois, sozinhos, vinte minutos sobre uma mesa a trocar de posição num frenetismo sexual que Joaquina jamais sonhara em ter com seu marido gordo, malvado e trabalhador. Eram momentos sublimes. Ele cada vez mais apaixonado por sua cintura, agarrava-a com força como se quisesse vê-la pelas costas o resto da vida. Ela respirava forte e liberava gemidos de pavor espaçados. Estava assustada e realizada por ser vítima de um domínio tão pleno. Faziam isso todo dia.

Até que o destino trocou de lado e resolveu cutucar a onça do marido, que andava desconfiado com o fogo da mulher nas noites em que brincavam juntos. A culpa foi de Marlene. Ela fazia cópias de documentos e passava o dia inteiro no meio da repartição. Todos a conheciam, porque todos a viam. Ela, faladeira, gostava de investigar a vida de quem ali trabalhava. E achou de tocaiar o casal fogoso que andava se roçando no meio do departamento. Foi quando atrasou na saída e, de dentro do banheiro, viu tudo que a mesa testemunhava há meses e não podia divulgar.

No dia seguinte, saiu mais cedo. Parou o marido de Joaquina na esquina e avisou: “Venha aqui às 17h40. Verás que tua mulher não te merece”. Aquela informação de uma conhecida poderia nascer sem valor. Mas ele andava desconfiado. Armou-se, foi trabalhar e depois rumou em direção ao serviço da mulher. Saiu às cinco horas. Não queria se atrasar.

Naquela tarde, na repartição, houve comemoração no cafezinho. Era aniversário de alguém e os colegas se reuniram para o parabéns. Foi quando Lúcio da Anunciação roçou a mão na cintura de Joaquina. Ela fingiu não sentir, mas todos perceberam. Nesse momento, Marlene percebeu que a morte já se anunciava antes mesmo que ele pudesse levar a mão direita à cintura dela.

A cambada de gente foi embora às 17h40 em ponto. A copiadora também. Lúcio e Joaquina idem. Mas logo voltaram. Estavam bem dispostos nesse dia. Ele ainda conseguiu acariciar sua cintura e levar sua mão para entre as pernas da mulher. Mas logo o marido entra na sala. Ao lado, a futriqueira, com cara de satisfação por delatar os pombos que clamaram por aventuras sexuais.

Ele tira a arma da cintura e embarga a voz. Chorou. Sentia ódio. Cegava de ódio. Com o trabuco em sua direção, a mulher implorava para que não o matassem. Ele gritou apenas “Corram!”. Mas o casal não entendeu. Então, soltou outro berro: “Corram, seus desgraçados!”. Os dois zilaram de mãos dadas, atravessaram a porta e sumiram. Nunca estiveram tão juntos um do outro.

Quando não estavam mais às vistas do marido traído, este vira para a fazedora de cópias, pousa o cano da arma no meio da sua testa e diz: “Se ficares calada, estragarás poucas vidas”. Puxou o gatilho. O tiro certeiro arrebentou-lhe a cabeça e ela se calou para sempre. Mas, antes que Marlene caísse inerte, Joca, o Marido, enfiou a arma na boca e acabou com o serviço. Matou-se. Morreu carregando o peso de saber demais.

domingo, 22 de julho de 2007

Uma lição

Deu tudo errado. Ela gostava dele. Ele gostava dela. Até ai tudo bem. Mas os dois andavam um pouco avoados. Quase não se tocavam. O “eu te amo” já não tinha entusiasmo. Era tudo automático. Faziam as mesmas coisas sempre. Ele chegava lá no mesmo horário. Ela ligava a televisão. Sentavam. Ele fazia uma gracinha, conversava um pouco com a sogra. Os dois viam TV e quando a primeira chamada do Jornal da Globo surgia, o cara chispava fora. Ela se despedia com cara de sono e ia dormir.

Nas noites em que arriscavam uma saída, iam comer uma besteirinha na esquina. E só. Namoravam há quatro anos. Eram jovens, por incrível que pareça. Ele tinha 22 e ela 20. Quase nenhuma diferença de idade. Na verdade, eram iguais na monotonia. E ambos, bem no fundo, não gostavam disso. Preferiam os velhos tempos: noitadas, viagens com amigos pra uma praia bonita, bebida, alegria, pegação. Mas, agora, estavam ali. Um na frente do outro, mergulhados numa mesmice profunda.

O pior é que Lúcio e Ana se acostumaram com essa vida. Nem arriscavam mais sair. Tinham poucos amigos. Ainda assim, a conversa não fluía muito bem. Estavam inócuos para tudo. Ela até deu uma engordadinha. Mas continuava bonita. Morena, olhos esverdeados, voz aveludada e calma, pernas musculosas. Era baixa, mas nem tanto. Com um salto, conseguia enganar um produtor de moda.

E ele, que um dia foi sarado, começou a colecionar uns quilinhos depois que passou a estudar pra concurso. Mas também tinha pinta de modelo. Era branco, cabelos pretos, lisos. E seguia à risca o corte do David Beckham. Por isso, mudava sempre de cabelo. Os amigos achavam a mania um troço pra lá de esquisito, o chamavam de viado a torto e a direito. Mas ele gostava, paciência.

Só não gostou quando Ana ficou estranha demais. Falava pouco. Parecia não ter tanta paciência com ele. Inventava umas dores de cabeça nos dias que ele acenava com as visitas de rotina, nas quais eram engolidos pela grade de programação da Globo. Percebeu que ela passou a esconder sempre o celular. Às vezes, fingia que esquecia.

Ele notou tudo. Até que resolveu lhe fazer uma visita surpresa. Entrou na casa dela, foi para cozinha e ficaram os dois por lá, papeando. Quando chegou uma mensagem no telefone dela, perguntou quem era. Ela disse que era o personal trainer da mãe, que tinha ficado de ligar. Mas ai chega outro recado: “Foi mal. É que as vezes me exagero, mas não consigo para de pensar em você. Beijos, minha paquera”, dizia a mensagem.

Ele enlouqueceu e ela tratou de negar tudo. Disse que o menino estava louco, que era da turma dela, mas tinha confundido tudo. Inventou, mentiu, chorou. Mas admitiu que a primeira mensagem era dele e ela viu e apagou sem que o namorado percebesse. Ele pôs a mão na consciência, mandou ela pra puta que pariu e foi embora. Chorou, pensou, esperou uns dois dias e resolveu conversar. Lúcio não era o namorado que ela necessitava, mas gostava muito da menina. Isso a comovia. Conversaram e decidiram dar um tempinho básico.

O tempo durou duas semanas. Lúcio resolveu ligar pra saber como andavam as coisas. Ana disse que estava muuuuito bem e revelou: tinha ficado com outro e estava gostando. Achava melhor eles acabarem tudo de uma vez. Ele alucinou um pouco e depois desligou o telefone, antes de ser tomado pela sensação de que havia feito tudo errado. E fez mesmo.

Perdeu seu amor porque esqueceu de dar emoção à sua relação. Achou que o tempo segurava tudo e acabou perdendo a gatinha pro primeiro mané que apareceu. Depois, soube que ela e o novo amor viviam em farras, viajavam pra lá e pra cá e abusavam de shows de axé – coisa que ele odeia. Ela estava feliz. O rapaz conseguia fazer o que ele nem pensou em fazer. Percebeu, então, que namoro só é bem firme quando se faz uma coisa diferente a cada dia. Senão, vai sempre dar tudo errado.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Últimos Instantes

Porque no momento em que ele saiu daquele consultório, decidiu que teria que viver sua vida intensamente. Aproveitar cada um dos últimos instantes que teria para viver.

Quanto tempo ele ainda teria não era certo. Mas era certo que estava acabando. Não lhe sobrara muita esperança depois de ouvir as palavras que ouvira naquele consultório.

E então, lá foi ele. Saiu dançando pela rua, parou no bar e tomou uma cerveja. Desceu na quadra, dobrou a barra da calça, tirou os sapatos e jogou bola com a criançada. Fez gol e comemorou como se fosse final de copa do mundo. Tomou outra cerveja para matar a sede.

Ligou para os amigos e convidou todos para uma noitada. Paga por ele, é claro. Queria gastar o máximo de tempo possível com seus fiéis companheiros, pois sabia que não teria outras chances para isso.

Comeu como um rei. Carne, massa, salada. Com direito a repetir quantas vezes quisesse. Esbaldou-se de sorvete na sobremesa.

E no fim do dia, deitou na cama e agradeceu. Por nunca ter passado necessidade. Por nunca ter perdido nenhum parente, ou amigo próximo. Por ter tido a oportunidade de estudar, trabalhar e viajar.

Por sempre ter sido respeitado pelos outros. Por ter aprendido a diferenciar o que era bom, do que era ruim. E, até mesmo, por ter nascido bem apessoado – pelo menos em sua própria concepção. E, principalmente, por nunca ter tido nenhuma enfermidade séria.

Enfim, agradeceu pela boa vida que teve, mas pediu desculpas por não poder mantê-la. Não depois do que ouviu dela, naquela manhã.

Depois de tantos anos juntos, ele jamais havia ido ao seu consultório. Afinal, não era preciso consultar-se com uma ginecologista.

E na primeira, e última, vez que esteve lá, ouviu a única coisa que o faria desistir de viver: “É uma pena, mas não te amo mais”.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Parece, mas não é

E era tão grande o desejo dela por ele. E tão grande o dele por ela, que muitas vezes eles nem sabiam o que fazer com aquele desejo todo. E por isso, ficam assim, parados, só se olhando, admirando. Com medo de deixar que aquilo explodisse e virasse uma bola de neve sem fim.

Ele observava cada movimento dela. Cada pedacinho, cada pintinha. Chegou certa vez a tentar contá-las, mas como ela não parava quieta, acabou desistindo. Seu sorriso era certo ao ver o dela. E o sorriso dela era tudo o que ele esperava ver todos os dias.

Ela não conhecia rapaz mais elegante. Ficava impressionada com seus gestos, sua forma de caminhar, falar e claro. De sorrir. Seu sorriso era o mais belo. Não tinha como não sorrir junto, vendo tão bonita expressão. Ela gostava do seu cabelo, sempre penteado. Da sua roupa, sempre bem passada.

E eles passaram anos assim, felizes, se admirando. Ele, atrás do balcão da lanchonete, entre um hambúrguer com milk-shake de chocolate e outro, que ficava de um lado da rua. Ela, da vitrine da butique do outro lado, enquanto atendia às clientes. Era uma paixão fantástica, que não conhecia limites.

Até o dia em que eles se conheceram. Apesar da elegância do balcão, ele não era nada educado. Apesar do belo sorriso, ela tinha bafo. Apesar da roupa bem passada, ele não usava desodorante. Apesar das várias pintinhas, sua pele tinha uma textura estranha. Não deu, não houve química.

E acabou-se a paixão.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Morto pelo braço

- Filho da puta!
- Pára com isso, Cláudia!
- Filho da puta mesmo! Você vai acabar com tudo. Não tem jeito!
- Calma, amor. Vamos conversar...
- Conversar o caralho! Não tenho mais nada o que conversar com você. São 10h da manhã. Você acha que eu sou o quê?

Todo casal briga. Para promover um belo arranca rabo, só precisa ser casal. É assim aqui e na China. Esses dois ai em cima costumam discutir bastante a relação. Sobretudo nos fins de semana. Ela, a Cláudia, até que é bem compreensiva. Mas o cara abusa. Ronaldo realmente não tem jeito. Sai pra tomar cachaça e não tem hora pra voltar.

Nessa manhã, ele chegou às 10h. No dia anterior tinha saído para trabalhar também às 10h. Portanto, 24 horas fora. Quando ela começa a brigar, ele já vai dando a desculpa. “Saí com o pessoal da redação e bebi muito. Não queria voltar dirigindo e dormir lá na casa do Marco”. Muitas vezes colou. Mas não agora.

O motivo da revolta de Cláudia não foi exatamente a noitada desenfreada do marido. “Por que é que você ta falando assim comigo?”, até estranhou ele, depois de alguns minutos discutindo. “Olha essa multa aqui, seu idiota!”, respondeu, irritadíssima.

O sangue subiu a cabeça. Ronaldo não tinha dormido direito. Tudo que ele queria era uma cama. E vem a mulher lhe falar de multa uma hora dessas? Que merda, pensava. Sem nem olhar a multa, ele aliviou a voz, como quem não consegue elevar o tom por puro cansaço, e falou: “Dinha, meu amor, eu vou tomar um banho, dormir e depois a gente resolve isso. Pode deixar que eu pago”, disse.

Ela começou a gargalhar sem parar. Demorou quase trinta segundos rindo. Ele, sem entender nada, aproveitou para soltar umas boas risadas sem graça e virou a cara. “Pega a merda dessa multa e olha a porra dessa foto”, disse ela, fechando a cara, em tom extremamente autoritário. Poucas vezes a mulher usava aquele tom nas discussões domésticas. O negócio era sério, imaginou Ronaldo.

Com a mão direita ele pegou a multa. Sentou na cama e sentiu um imenso frio na barriga. Não conseguiu encarar a mulher e calou-se. O papel trazia um prejuízo de aproximadamente R$ 180. Mas o pior mesmo era a foto.

A imagem em preto e branco mostrava um Celta preto, sujo de barro. Através do pára-brisa nada se via. Afinal, multas não mostram quem está dentro dos carros. O inferno de Ronaldo, porém, começava no banco do passageiro. Daquele lado do Celtinha de guerra dava para se ver um braço feminino para fora, pegando um ventinho, com um cigarro entre os dedos. Era uma mulher, sob um sol de 7h30. Os dois voltavam juntos de algum lugar depois da farra. O local da multa também denunciava o adultério.

- Porra, Ronaldo. Tem uma mulher fumando dentro do nosso carro, falou Cláudia, com a voz embargada e a primeira lágrima descendo pelo nariz.

Ele apenas levantou a cabeça, ainda sem ter o que falar, olhou fixo nos olhos da mulher e pensou: “Tenho que salvar meu casamento”.

E continuou sem falar.

domingo, 15 de abril de 2007

Devoção ao Santo

Não era dia de São João e muito menos de Santo Antônio, mas foi o dia em que eles se conheceram. E se é que tem graça contar o final da história no começo dela, eu já vou dizendo logo que essa história acaba como gosta o santo padroeiro dos solteiros: em casamento.

E não tinha jeito melhor de acabar. Porque na noite em que se conheceram, durante uma festa junina, a encenação do casório – com direito a noiva casando grávida e o delegado indo buscar o noivo fugido na beira da estrada – já tinha acontecido e a quadrilha se preparava para sair de cena quando o puxador da festa convidou todos os presentes a acompanharem o cortejo de núpcias dos recém-casados. Mas tinha que ser de par. Cada um que arrumasse logo sua dupla, se não ficaria para trás.

Claro que Santo Antônio deu logo um jeito dos dois dançarem juntos e se conhecerem. Mas não passou daquilo e novamente o Santo teve que dar um jeito pros dois se reencontrarem e se gostarem mais e namorarem.

Acabou que também não deu certo, só que não sei se você sabe, mas quando um santo quer uma coisa, não tem jeito. Essa coisa vai acontecer. O bom e velho Antônio, louco pra realizar mais uma união cruzou a estrada dos dois de novo.

Mas como todo romance tem que ter um pouco de sofrimento, num foi dessa vez que o deles deu certo. O romance, não o sofrimento. Porque sofrer, ah, como sofreram os dois. Por saudade, por raiva, por orgulho, por não saber se era realmente aquilo que queriam. Tudo foi motivo de lamento para eles.

E aí foi o fim. Para eles, um fim derradeiro, daqueles que não há reza – e muito menos santo – que desse jeito de voltar. Cada um seguiu seu caminho, viveu sua vida sozinho e, por algum tempo, acompanhado de outro alguém. Mas nada foi tão intenso, quanto o que era entre os dois.

E eles ficaram sós, querendo voltar. Mas um dos dois sempre achava que não devia e por isso acabava desistindo. E foi assim por um longo tempo. Período de dificuldade. De aprender errando e se desesperar a cada vez que batia com a porta na cara. Até que o Santo resolveu aparecer na história novamente.

E aí, na quarta vez que se encontraram, se acertaram. E aí sim, foi uma felicidade. Encontraram o amor, a amizade e a companhia perfeita para o resto de suas vidas. Namoraram, se amaram, riram das bobagens do passado e, como já era sabido, casaram. Graças a Santo Antônio!

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Silêncio, olhar, frustração

Se por um lado a gente sente que tudo se acabou, contando até três podemos retomar a medida da vida. Primeiro, o silêncio. Depois, um olhar sem graça, transpassado, sem rumo. Mais além, a vontade vetada de falar. Frustração e, agora, uma constelação de idéias. Vou sair dessa, se pensa. E a gente sai mesmo. É só manter a calma.

Outro dia, a menina de olhos azuis entrou numa festa qualquer e sentiu na garganta o peso de uma surpresa. Olhou seu primeiro namorado. Ela tinha 23. Ele também. Os dois viveram alguma coisa além de um primeiro amor quando fazia lá a segunda série.

A jovem ficou surpresa por dois motivos. Primeiro: estava admirada por conseguir lembrar daquele cidadão. Fazia, pelo menos, uns 10 anos que não se encontravam. Por onde andava aquele rapaz?, chegou a se perguntar por diversas vezes ao longo da adolescência. E agora ele estava ali, na sua cidade, feito um andarilho desgovernado a sorrir e conversar com os amigos.

A segunda coisa que a impressionou foi o fato de ter ficado realmente balançada com aquele encontro. Ela não gostava dele, tinha certeza. Mas sentiu uma sensação inexplicável ao vê-lo. Voltou no tempo. Sentiu até frio na barriga. E olha que frio na barriga só acontece com os melhores amores. Enfim...

Passou a noite olhando o rapaz. Ele, embora flertasse com ela, nem ameaça uma aproximação. Aquilo causou um certo incômodo na menina dos olhos azuis bonita, decerto, porém, atrevida. Depois de duas horas de balada, o que antes incomodava lhe deixava agora furiosa. As quatro doses de vodka com suco e uma talagada de tequila ajudaram o sangue subir à cabeça.

Incentivada por amigas, lá vai ela ao encontro do moço. A conversa que se seguiu – e quero deixar bem claro que eu realmente não queria que fosse assim – tomou rumo inusitado. Veja só:

- Oi
- Ei, tudo bem?, disse o rapaz, abrindo o sorriso.
- Tudo. E você?, continuou ela.
- Bem também. A festa tá boa, né?, puxou assunto o cidadão
- Tá sim. Você ta morando aqui?
- Não. Mas... você me conhece?

Primeiro, o silêncio. Depois, um olhar sem graça, transpassado, sem rumo. Mais além, a vontade vetada de falar. Frustração e, agora, uma constelação de idéias.

- Conheço tanto que você nem imagina, respondeu ela.
- Como assim?
- Sou Melissa. Estudei com você no Colégio São Bernardo. Fizemos a 1ª e 2º série juntos.
- Melissa? Não lembro...
- Como assim não lembra? Você não é o Gustavo?
- Sou.
- A gente namorou, não lembra?
- Acho que... como é seu nome mesmo? Melissa, né? Pois é, acho que você está viajando...
- Que viajando droga nenhuma. (o clima esquentou!) Você tinha uma lancheira preta do Batman e levava comida pra gente trocar. Você machucou o pé no pátio no dia da apresentação da peça. Não é você?
- Sim, eu machuquei o pé quando era pequeno. Mas eu não lembro de você. Pode ser?

O silêncio. Um olhar sem graça, sem rumo. Mais além, a vontade vetada de falar, indignação.. só indignação.

Ela ficou sem idéias

sexta-feira, 23 de março de 2007

A Cicatriz

Uma cicatriz é uma marca. Normalmente, um sinal feio. Branca, vermelha, grande, pequena. Não escolhe raça, idade ou sexo para aparecer. Todo mundo sempre carrega uma.

Ela pode trazer diversos significados. Uma aventura na infância, daquelas de pular cerca com arame farpado ou uma queda de bicicleta. Uma mordida de cachorro, uma briga com o irmão e até uma queda na escada podem deixar marcas.

Outras cicatrizes podem não trazer lembranças saudosistas de uma infância de aventuras e desventuras. Esses sinais podem ser resultantes de acidentes mais sérios, da vida adulta. Uma batida de carro ou uma briga com conseqüências mais perigosas como uma facada.

E também tem aquela cicatriz de amor. Aquele sinal marcado dentro do peito. A que dizem ser a mais difícil de sarar, porque quando você acha que ela está fechando, algo acontece e a rasga novamente. E sangra tudo de novo.

E ainda tem as cicatrizes como a de Carlos. Aquelas que são uma mistura de todas as outras: ele carregava uma marca, um sinal no peito. Era um resquício de amor, tanto no seu sentido poético, quanto no seu sentido sexual. E também uma mistura de alegria de criança com o perigo das relações adultas.

Um arranhão. Foi o que deixou a cicatriz em seu peito. Vermelha como o esmalte pintado na unha dela na noite em que, morta de prazer, lhe apertou tanto que ficou marcado.

Ardeu, ficou ferido e depois cicatrizou, mas ele repetiria aquela noite e ganharia várias outras marcas em seu corpo se fosse possível. Não pensaria duas vezes em entregar seu corpo à flagelação dos arranhões dela se todos acontecessem da mesma maneira.

Carlos carregava aquela lembrança em seu peito. E todos os dias, em frente ao espelho, ele sonhava em ter novamente as unhas dela – pintadas de vermelho – cravadas em seu peito. Um prazer absoluto.

domingo, 18 de março de 2007

Como uma lua

Tenho fases de ser inteligente. Fases que falo “abrido” em vez de aberto. Fases que morro de manhã e ressuscito de noite. Ora fico em casa, ora saio a rua sem ter muito pra fazer. Tenho fases que prefiro a parede ao sorriso de uma bela moça. Fases de gostar mais, fases de gostar menos. Também tenho fases que não gosto. Ou melhor, fases que detesto. Momentos péssimos de serem vividos, mas que precisam ser vividos.

Tenho fases de insegurança. Em outras fases eu tenho tanta segurança que me sinto inseguro. Tenho fases de achar-te linda. Em outras quero que Deus me devolva o domínio sobre meus sentimentos e peço a Ele que me revele o quinhão de feiúra da mulher amada. Tenho tantas fases que acredito ser a lua. Mais adiante, tudo fica tão igual que penso ser o barulho do mar.

Tenho fases que sinto frio. Fases que sinto calor. Às vezes quero ser extremamente frio. Nessas fases penso em contratar um caminhoneiro ou um caixeiro para me legar uma pitada de ignorância e desprendimento. Em momentos quero afastar-me de tudo ao meu redor. Em outros quero tudo de volta, como se fosse uma criança que “ora quer o que quer, ora quer o que querem que ela queira”. Tenho fases que me orgulho de ser doce e amável. Fases que me orgulho de ser tolerante, discreto, amigo, alegre, chato, inconveniente, burro, maduro, infantil e amado. Em outras me sinto um deserto por isso. Acho que tenho fases que queria ser eu, fases que queria ser você.

Mas de todas as fases a que eu gosto mais é quando tudo parece normal. Quando nada acontece, mas há um iminente perigo no ar, como a calmaria antes da tempestade ou a excitação antes da depressão. Tenho fases de pensar na vida, fases que a deixo me levar. As vezes quero carinho, as vezes quero que percebam que quero carinho. As vezes me sinto muito caro, as vezes sou a deflação em desatino. Tenho fases de falar muito, fases de falar pouco. Tenho fases que sou o problema. Tenho fases que sou a solução. Tenho momentos de achar tudo engraçado.

Em certas fases eu te entendo. Na maioria delas não. Quando penso que te entendo, chega a fase do caminhão, que atravessa a via na minha preferencial, atropela o coração e me afasta de novo de ti. Tenho fases que sou sincero. Em outras não. Vivo momentos que te sinto de verdade. Em outros, te sinto de mentira. Tenho fases de ser exigente. Fases que detesto gente. Ontem tive a fase da desunião, que é quando o sentimento desmaia como se nunca mais fosse acordar. É apenas uma fase. Logo ele volta e reascende a fase do desejo. Hoje estou na fase da delação, que é quando fofoco pra mim tudo que penso ser e descubro que queria ser tudo que escrevi. Aí está o começo da fase da ilusão.

segunda-feira, 12 de março de 2007

A máquina de Jonas

Já reparou como o tempo passa rápido quando estamos com alguém que gostamos, ou quando estamos fazendo alguma coisa bem divertida? Aquela tarde com a namorada, cheia de beijinhos e abraços passa feito avião da aeronáutica em dia de sete de setembro. E aquele bate papo com os amigos, em baixo do bloco, em uma sexta-feira à noite...Quando vê já são duas da manhã. Isso sem falar no sono né?!?! Nunca é suficiente, sempre precisamos de pelo menos mais dez minutinhos.

E quando estamos fazendo algo chato?? Aquela aula de matemática que nunca termina. Aquela amiga chata que liga bem na hora do futebol pra chorar porque a calça jeans não cabe mais nela, ou sua avó que quer saber se você melhorou daquela dor de ouvido de seis meses atrás.

E foi pensando nisso que Jonas decidiu inventar aquela máquina. “Máquina de Inversão”, era como ele a chamava. Isso porque a sua finalidade era justamente a de inverter o tempo. Como? Trocando essas situações que falei acima.

Assim, com sua Máquina de Inversão, Jonas fazia a aula de matemática passar mais rápido que um trem bala (mesmo que ele nunca tenha visto um) e a fila do banco quase não existia. Engarrafamento então, nem pensar. Jonas fazia todas as coisas chatas correrem com os ponteiros do relógio e com isso ganhava tempo para as coisas legais.

As tardes no parque jogando bola eram intermináveis. Uma bola de sorvete durava mais que um pote inteiro, e o jogo do seu time - quando estava ganhando e jogando bonito, é claro - durava muito mais que os dois tempos de 45 minutos. Mas o melhor, o bom mesmo, aquilo que fazia Jonas botar sua máquina pra funcionar mais rapidamente era quando encontrava com ela. Fabiana! Ahh... Jonas se derretia todo. Os carinhos, cafunés, beijinhos. A máquina quase explodia de tanto que funcionava, mas para Jonas essa tinha sido a maior razão de construí – la.

Naquele momento, para Jonas, o tempo passava lentamente. Mais devagar que bicho preguiça se espreguiçando. Parecia que você, atrasado para a reunião mais importante da sua vida, parou em uma faixa de pedestres para esperar a travessia de uma família de caramujos acompanhados por sua amiga lesma. Nunca, nuca algo poderia ser tão lento. E era isso que fazia Jonas feliz. Aquele instante era algo mágico e se eternizava.

E agora você deve estar se perguntando: “Como ele construiu a tal máquina?” “Será que ele me empresta um pouquinho? Quem sabe não me vende?” E é aí que eu deixo o Jonas falar por ele: “Cada um tem sua própria máquina. Basta saber como fazê-la funcionar, e essa é a parte mais fácil. E só você pegar aquele tempo bom, nem que ele tenha durado só um segundo, e guardá-lo bem na sua memória. Pronto, você bota sua máquina pra funcionar usando a memória. Reviva o segundinho bom se lembrando o quanto foi gostoso, as sensações e tudo mais sentido naquele momento. E as coisas ruins você deve apagar da memória. Dessa maneira não precisa ficar relembrando nada que não deseje. Simples...”

Ouvi dizer que agora Jonas está tentando aprimorar a máquina. Em vez de passar o tempo devagar, vai faze-lo parar. Eita sujeitinho esperto esse Jonas! Que houve? Leu o texto rapidinho? Ah, comece a botar sua máquina pra funcionar então...

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Sono

Ela não conseguia dormir. Rolava de um lado para o outro. Cobria-se sentindo frio, descobria-se com calor. Um travesseiro a mais na cabeça. Outro entre as pernas. Um copo d’água. Algumas páginas de um livro meio chato sobre a Revolução Francesa. Sessão Corujão na TV. Nada a fazia dormir.

Já fazia um mês que isso se repetia. Toda noite a mesma ladainha. Ela nem pensava mais em ir deitar-se. Dava boa noite à todos, entrava no quarto e lá ficava. Começou a escrever um diário. Sentada em sua escrivaninha, escrevia tudo o que havia feito durante o dia. Até poesia começou a escrever. Não era nenhuma Cecília Meireles, mas era a maneira de expressar seus sentimentos.

As noites passavam e mais seus sentimentos se esvaiam nas folhas do diário. E daquela forma ela começou a tentar achar o por que de sua insônia. Funcionava como uma terapia. Palavras, sensações, lembranças, tudo no papel para tentar adormecer. E mais de um mês havia se passado.

Até o dia em que ela o encontrou novamente. Meio sem jeito, sem saber como agir depois de tudo o que tinha lhes acontecido, ela deu um sorriso e acenou com a mão. Ele – parecendo ainda mais sem graça – respondeu da mesma maneira. Saíram, cada um para uma direção diferente. Andaram em círculo e, distraídos, acabaram topando um no outro.

Ele a segurou com um abraço, daqueles apertados, que a gente dá quando tem muita saudade. Ela não retribuiu. Simplesmente caiu no sono. E desta forma, ao acordar no dia seguinte com ele ao seu lado – vigiando os seus sonhos –, descobriu que o que lhe faltava para dormir era o peito dele para descansar a cabeça, seus braços lhe apertando, seu corpo lhe aquecendo e seu cheiro que trazia a calma necessária para uma noite tranqüila de sono.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Quem procura...

- Oi?
- Oi. Tudo bem?
- Tudo tranqüilo. Saudade de você.
- É mesmo?
- É. Desde aquele dia no clube eu não parei de pensar em você.
- Por isso resolveu me ligar agora?
- Foi.
- Olha, Lu, você sabe que eu ainda não engoli aquela história, né? Tudo que se passou foi foda pra mim. Aquele cara era meu conhecido e você sabia disso. Meu conhecido não. Fazia alguns dias eu andava com aquele filho da puta! E ele teve coragem de pegar minha ex.
- Desculpa, Roberto. Eu tinha bebido o dia inteiro, amor. Tu sabe que quando eu bebo lembro das coisas ruins que aconteceram com a gente e começo a fazer essas merdas. Aquilo não era eu!
- Era você sim, Luciana. Pare com isso! Eu vi com os meus olhos. Eu cheguei no clube, falei com você, achava que tava tudo bem. Quando olho pro lado, você sumiu e o Fernando também. E onde você estava? Ora... na sauna!
- Você nunca mais vai esquecer isso, né?
- Nem isso, nem esse monte de besteira que você fez nas vezes que brigamos. Você só faz merda, Luciana. Essa agora foi a pior de todas. Você acha que é fácil encontrar uma namorada de três anos com as mãos dentro da cueca de um amigo?
- Ex-namorada, Roberto.
- Que seja, porra. E se fosse eu que tivesse com a mão dentro da calcinha da Julia? O que você faria? Que droga! Você tem a mania besta de só olhar pelos seus olhos. É uma ingrata.
- Me desculpe, amor, por favor.
- Tá bom, menina. O que você quer afinal? Me liga só pra me lembrar essas porcarias?
- Não, Rô. Na verdade, eu queria te avisar uma coisa. Sei que você ficou com raiva de mim por eu ter ficado com o Fernando. Então te liguei pra dizer que... que... que...
- Que o quê, Luciana? Desembucha, sua louca!
- Que eu fiquei com o Gustavo.
- Gustavo? Que Gustavo? Não conheço nem um Gustavo.
- O seu primo.
- O quê? Sua desgraçada! Como você teve coragem? Logo o Gustavo? Puta que pariu. Eu estou rodeado de filhas da puta. Todo mundo resolveu pegar minha mulher agora. Imagina se você fosse bonita e gostosa, hein?
- Olha, Roberto. Tô fazendo um favor de te avisar. Não vem me ofender, não.
- Mas é mesmo. Você é muito oferecida. Não sei como eu passei três anos namorando contigo, sua rapariga. Devo ter levado uma dezena de chifres.
- Rapariga é a tua mãe. E tu levou um monte de chifre mesmo.
- Ah! é? Com quem, hein?
- Vamos parar com isso. Vou desligar o telefone.
- Não vai desligar, não. Diz, sua gordinha de merda. Quem foram os caras?
- Gordinha de merda é a tua vó, Roberto. Não tô te reconhecendo, cara. O quê isso? Por que tá me tratando assim?
- Com quem, Luciana? Responde!
- Que saber mesmo? Então tá. Sabe aquele dia do churrasco do teu aniversário, que eu passei mal?
- O que é que tem?
- Eu não passei mal coisa nenhuma. Tava era fingindo para encontrar com o TEU IRMÃO no quarto dele.
- O QUÊ!!!! SUA...
- Seu corno...
- QUEM?!?!?!

tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu.....

sábado, 10 de fevereiro de 2007

A decepção

Nada do que se constrói é deixado pra trás. Quando Lúcio ouviu pela primeira vez essa frase, ele acabara de comprar uma lata de molho de tomate para fazer macarrão. Saiu do mercado e deparou-se com uma garota caída. Bonita, de pele limpa e olhos sutilmente puxados, ela fazia força para se levantar e comprimia as sobrancelhas reclamando de dores no pé. Naturalmente, torcera depois de quebrar o salto. “Coisas de mulher”, pensou o rapaz.

Ao pé da loja, deu a mão à garota, pegou seus livros caídos e perguntou onde ela morava. “Muito obrigada por me ajudar. Me chamo Michele”, disse. “Ah! desculpe. Sou Lúcio. Machucou muito?”. “Não, obrigada”. “Então... você mora aqui perto?”. “Na quadra sete, atrás da padaria”. “Ora, que bom. Moro na cinco. Se quiser posso te deixar em casa”. “Não, obrigada. Ainda tenho que estudar antes de ir”, respondeu, indo embora e sorrindo. “Ok, foi um prazer”.

Tempos mais tarde, o ansioso e inseguro Lúcio chega em casa e, da sacada, avista a menina dos saltos andando em direção a quadra sete. Gritou, acenou, sorriu e perguntou em que andar ela morava. “Quarto!”, respondeu. Naquela noite, fez macarrão para reunir os amigos. Ele adorava espaguete. Nos dias seguintes, buscou aproximação com Michele e em poucas semanas estavam saindo.

Em um mês começaram a namorar. Em três se amavam e em um ano a única busca do rapaz era decifrar a garota que lhe encantara e parecia tão distante. Namoravam firme. Foi assim durante um, dois, três... No quarto ano eram praticamente casados. Dividiam as mesmas amizades, falavam e gostavam das mesmas coisas, moravam praticamente juntos, mas ainda haveria muito a se descobrir.

Nada do que se constrói é deixado pra trás, pensava Lúcio, sobretudo quando comprava molho para o macarrão que tomaria com vinho tinto. Aos 26 anos, tinha um bom trabalho, boas amizades e uma boa namorada. Ela, embora reservada e misteriosa, parecia amá-lo, mas não compartilhava com ele os mesmos planos. Tinha dificuldades em se entregar totalmente. Era formada, mas não suportava o ofício. Coisas de mulher, pensava ele.

Na sexta-feira, ele combinara em sua casa com vários amigos. Comeriam macarrão e beberiam vinho. “Vou chamar a Marisa pra me ajudar a arrumar a casa”, falou Michele. “Tudo bem”, respondeu. Marisa era a única solteira do grupo. Tinha dificuldades em arrumar namorados e todos se compadeciam com aquilo. Por isso a chamavam para as festinhas íntimas. “Vou à casa dos meus pais, depois compro o macarrão e volto”, disse.

Desceu o prédio, cruzou com Marisa no elevador, entrou no carro e ligou para os pais. Eles estavam viajando. Então só foi na padaria, comprou algumas guloseimas, o macarrão, o molho e voltou pra casa. Conversou alguns minutos com o porteiro. Como sempre, avisou da festa. Subiu, abriu a porta da sala e viu um sutiã no sofá. Estranhou a bagunça. Michele sempre fora organizada. Cruzou o corredor, entrou no seu quarto e viu sua namorada apertar fortemente os seios da amiga, preparando-o para beijá-lo. A nudez tão nítida das duas empalidecia o semblante derrotado do namorado. O que era aquilo?

Ele fora traído. Sua namorada era lésbica e parecia mais excitada do que todas as transas que tivera com ele. Tudo passava muito rápido por sua mente. Lúcio buscou a maçaneta. Equilibrou-se. Michele saiu de cima do corpo da amiga e catou o canto da cama. Ela acabara de soltar um grito fino, de espanto. Puxara o lençol para encobrir os seios e apalpou a cama duas vezes. Procurava o sutiã. Estava na sala. Calou-se, então, sem conseguir se mexer. Lúcio também. A amiga solteira havia levado a mão à testa e sussurrado um caralho! como se estivesse diante do fim do mundo. Lúcio olhou calmamente para as duas e pediu: “Vou tomar um banho. Quero que vocês se vistam e saiam da minha casa”.

Deixou as compras na cozinha e entrou no banheiro. Banhou-se com água, com lágrimas e com decepção. Seu coração batia forte. “Nada do que se constrói é deixado pra trás”, lembrava da frase que já não lhe fazia sentido. Prometeu nunca mais encontrar a sua companheira de quatro anos. E assim o fez. Às sextas-feiras, quando sai da padaria com o molho para o macarrão, pensa: “Tudo que se constrói fica pra trás”. Ele modificou a frase. Deixou-a mais segura e realista. Assim pôde se apegar sem crer em eternidade. Entendeu que, na vida, nada é pra sempre.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

A vilã arrependida

A tristeza nos olhos da menina soava como um funeral em praça pública. Sentada ao lado de uma máquina de sorvete, ela parecia uma indefesa criatura solta num mundo selvagem. Mas o show naquela noite era de rock. A máquina de sorvete nada tinha a ver com aquele clima. Ela estava apenas escorada, no aparelho e em seus pensamentos. Há pouco tinha cometido um dos grandes erros de sua vida. Mas como todos os erros da vida, só percebeu a merda depois que ela aconteceu.

Ao seu lado, acomodou-se um conhecido chamado Arrependimento. Ele é vizinho da Tristeza. De porta! Estão quase sempre juntos. Na maioria das vezes, a Tristeza vai embora primeiro que o Arrependimento. Mas, naquele momento, a menina dos olhos de mel, chamada Melissa, sentia a presença do arrependimento e isso lhe causava enorme tristeza.

O fato que levou Mel a esse estágio de reflexão foi sua imatura vontade de viver bem rapidamente tudo que tinha a sua volta. Ela, uma garota de 24 anos, namorou dos 16 aos 24 com dois rapazes diferentes. O primeiro durou quatro anos. Nunca aproveitou a plenitude de sua “solteirice”, embora tivesse aproveitado bastante enquanto tinha um namorado. Mas, antes daquele show de rock, ela admirava a vida das amigas solteiras. Gostava da maneira como se sentiam livres e queria ser igual a elas.

Uma semana antes, esses efeitos foram sentidos no seu relacionamento. Foi se distanciando de André, com quem namorava há dois anos e meio. Em uma semana, estava decidida a acabar. Queria mesmo era ficar só. Tomou a decisão e avisou ao namorado. Decretou sua solteirice numa quinta-feira. Saiu na sexta e saiu no sábado. No show de rock, bebeu demais. Sentiu vontade de ficar com um “carinha” qualquer e ficou. Sem compromisso, só para testar a liberdade.

Mas ela não esperava que André passasse, acompanhado de seus amigos de sempre, e presenciasse aquele beijo tão quente. Quando Mel abriu os olhos, viu que o recente ex-namorado a encarava, com um ar de tristeza, decepção, raiva, surpresa, pavor, choque... enfim. Ele estava visivelmente abalado. Ela ficou mais ainda. Como se não bastasse, reparou que o rapaz limpava os olhos com a camisa. Eram lágrimas! Ela acabara de demolir um coração.

Mel não conseguiu tirar os olhos de André por um bom tempo. Por dentro, um sentimento de pânico e uma vontade desatinada de chorar. Ela se afastou do garoto que acabara de beijar e isolou-se na sua tristeza, pensando no que fazer. Percebeu então que André se despedia dos amigos. Ele sucumbira àquela cena. Iria para casa. Tentaria se recompor.

Foi quando Mel andou rápido, quase correndo em desespero. Segurou em um dos braços de André e o rapaz parou. Não fitou seus olhos. Silenciou e aguardou qualquer comentário da ex-namorada.

- André... olha... Eu não sei o que aconteceu comigo. Isso não teve nada a ver. Eu juro... Eu não queria.

Cada vez mais, o olhar do rapaz demonstrava irritação e decepção. Ele não a encarou em nenhum momento, como se estivesse enojado. Ela prosseguiu:

- Meu amor, eu juro. Me perdoa. Eu não sou assim. Você sabe. Não fica assim comigo. Vamos conversar.

André a interrompeu, olhou bem fundo nos seus olhos e começou a falar.

- Melissa, eu quero que você lembre de tudo que eu fiz por você, por nós dois, e se arrependa. Eu nunca quis te deixar. Você me deixou e parecia bem decidida. Agora, eu percebo o quanto imatura e desorientada você está. Você quer saber se eu te perdôo? Claro que eu te perdôo. Mas não quero você nunca mais. Nossa história acabou de vez hoje. Não me procure de maneira nenhuma. Você não merece o amor que tenho por você.

Depois da última palavra, André virou a cara e foi embora. Mel deu quatro passos e sentou numa cadeira com um pé meio quebrado. Ao lado, uma máquina de sorvete. De cabeça baixa, colocou a mão no rosto e começou a chora, chorar e chorar. André não era maleável, jamais voltaria para ela, pensava a menina. Quem passava pela máquina de sorvete imaginava o que de tão terrível poderia ter acontecido com aquela moça com seus 24 anos aparentes.

Mel perdeu um amor por um estranho. Mas ela só quis viver bem sua mocidade. Que pena, encontrou a maneira errada. Acabou virando uma vilã arrependida e triste.

Eles pensam que sabem de tudo.
Pura inconsciência!
Tim Maia