quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Último dia

A chave que tocava o copo soava como um sino. A vodka já ultrapassava o efeito máximo. Ele passara da tristeza pra euforia e agora permeava a disolação. Vivia num mundo de bêbados. Todos com um copo na mão a procurar um parceiro. Era triste porque era tímido. Era tímido porque se achava diferente. E se achava diferente porque era gay. O mundo na porra desse lugar não me cabe, dizia, atacando a pequena cidade onde vivia.

Pessoas o olhavam de lado, com desprezo. Tudo normal para uma terra conservadora. Mas aquilo o incomodava. Batia no fundo da alma, perfurando as idéias. Por isso, tentara se matar duas vezes. A primeira com remédios. A segunda, enforcado. Amarrou um lençol na base do telhado, subiu numa escada e sentiu um leve aperto no pescoço. Mas doeu mesmo a bunda e a cabeça. O telhado cedeu e ele caiu seco. Um pedaço de telha terminou de quebrar bem na sua testa, embaralhando ainda mais as idéias.

A tentativa frustrada o fez largar o trabalho na mercearia. Resolveu faltar e foi pro bar. Decidiu que nada melhor na vida do que beber triste. Foi o que fez, durante sete horas seguidas. Quando não aguentar mais a disolação e a cabeça não conseguia mais martelar pensamentos, parou e começou a perceber o movimento da chave contra o copo de vodka.

Passou uns 15 minutos de cabeça baixa. Tudo rodava. Quando resolveu levantar a cabeça pra pedir mais uma, alguém puxou a cadeira e sentou.

- Oi.
- Como vai?
- Eu? Bem. Mas você parece querer morrer.
- Já tive vontade maior.
- Olha, rapaz, não quero te fazer feliz não, mas você não está sozinho nessa.

O homem via dois jovens de olhos puxados na sua frente. Usava uma camisa quadriculada, com os primeiros botões abertos. Dava pra se ver os pelos ainda tímidos saindo do peito. “Não enche”, respondeu. “Sou veado mas não preciso de consolo”.

Precisava sim. E o rapaz do corpo atlético e camisa quadriculada pegou sua mão, apertou: “Você tá sozinho, sua bicha, não vem bancar o forte que sei que és mais frágil que capim seco. Estou aqui pra ficar junto de você e lutar contra a merda desse lugar”.

Juntos, tomaram mais três doses e saíram do bar. Um não entendia o outro. O suicida pensava pouco. Só admitia que a vida é uma merda porque não é previsível. Sentia naquele momento mais uma oportunidade pra odiar tudo que passou. Tinha em sua frente a surpresa da noite, mas não gostou da forma como tudo aconteceu. Talvez porque estivesse bêbado. Mesmo assim, se sentia atraído pela firmeza daquele garoto. E imaginou que poderia se apaixonar e viver melhor.

Chegaram então numa casa abandonada. Encostaram na parede e a iniciativa veio do mais novo. Levou a mão por entre as coxas do outro e apertou forte. Aquele que era triste agora agarrava o pescoço do estranho para dar-lhe com a língua em seus dentes, apertar-lhe a bunda para, em seguida, baixar as calças.

O jovem tirou a camisa, deu uma volta em seu pescoço e perguntou: “Lembra-se do Jonas?”. Repetiu a pergunta pela segunda vez e não houve resposta. “Lembra-se do Jonas?”, repetiu, mais alto e mais agressivo. No alto da excitação, a resposta saiu como um gozo. “Claro, aquele garoto é ótimo. Foi pra você também?”.

O garoto era irmão do jovem José, recém chegado na cidade. “Ele é bom pra mim. Mas eu sou melhor pra ele”. Em poucos segundos aquele que parecia gay e aventureiro tirou uma faca de cozinha da meia e enfiou na barriga do funcionário da mercearia, pressionando e puxando para cima, num movimento vertical e fatal. Tudo foi muito rápido. A parede respingada de sangue só apareceu quando ele caiu aos seus pés, de joelhos, com a camisa quadriculada ainda no pescoço.

Olhou de baixo pra cima e sentiu a faca perfurar suas costas. Estava pronto pra morrer. Entendeu que tudo fora uma armação. Um truque bom, cujo final feliz era a morte. Sorriu e disse as últimas palavras: “Obrigado, obrigado”. Morreu com a lembrança do pobre menino que assediava na saída da escola por vários dias e violentara quando, enfim, perdeu as estribeiras. Caiu aliviado. Entregou-se para morte, como queria. E ainda com o próprio sangue nas mãos.

3 comentários:

  1. trágico como sempre, hein? Não seja tão cruel com as bibas, há muitas bibas felizes por aí!
    Abç

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  2. Coca-cola,
    você é demais!
    Trágico, engraçado e supreendente seus textos... achei que ele ia ver estrelas de prazer, mas você mata o cara???? kkkkkkk

    beijos

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  3. Pedenrique...vc, cada dia que passa, me parece mais e mais autobiográfico, hein!?!?

    Auahuahauhauahuaha!!
    Tá ótimo o texto muleske! Parabéns!!

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