sábado, 10 de fevereiro de 2007

A decepção

Nada do que se constrói é deixado pra trás. Quando Lúcio ouviu pela primeira vez essa frase, ele acabara de comprar uma lata de molho de tomate para fazer macarrão. Saiu do mercado e deparou-se com uma garota caída. Bonita, de pele limpa e olhos sutilmente puxados, ela fazia força para se levantar e comprimia as sobrancelhas reclamando de dores no pé. Naturalmente, torcera depois de quebrar o salto. “Coisas de mulher”, pensou o rapaz.

Ao pé da loja, deu a mão à garota, pegou seus livros caídos e perguntou onde ela morava. “Muito obrigada por me ajudar. Me chamo Michele”, disse. “Ah! desculpe. Sou Lúcio. Machucou muito?”. “Não, obrigada”. “Então... você mora aqui perto?”. “Na quadra sete, atrás da padaria”. “Ora, que bom. Moro na cinco. Se quiser posso te deixar em casa”. “Não, obrigada. Ainda tenho que estudar antes de ir”, respondeu, indo embora e sorrindo. “Ok, foi um prazer”.

Tempos mais tarde, o ansioso e inseguro Lúcio chega em casa e, da sacada, avista a menina dos saltos andando em direção a quadra sete. Gritou, acenou, sorriu e perguntou em que andar ela morava. “Quarto!”, respondeu. Naquela noite, fez macarrão para reunir os amigos. Ele adorava espaguete. Nos dias seguintes, buscou aproximação com Michele e em poucas semanas estavam saindo.

Em um mês começaram a namorar. Em três se amavam e em um ano a única busca do rapaz era decifrar a garota que lhe encantara e parecia tão distante. Namoravam firme. Foi assim durante um, dois, três... No quarto ano eram praticamente casados. Dividiam as mesmas amizades, falavam e gostavam das mesmas coisas, moravam praticamente juntos, mas ainda haveria muito a se descobrir.

Nada do que se constrói é deixado pra trás, pensava Lúcio, sobretudo quando comprava molho para o macarrão que tomaria com vinho tinto. Aos 26 anos, tinha um bom trabalho, boas amizades e uma boa namorada. Ela, embora reservada e misteriosa, parecia amá-lo, mas não compartilhava com ele os mesmos planos. Tinha dificuldades em se entregar totalmente. Era formada, mas não suportava o ofício. Coisas de mulher, pensava ele.

Na sexta-feira, ele combinara em sua casa com vários amigos. Comeriam macarrão e beberiam vinho. “Vou chamar a Marisa pra me ajudar a arrumar a casa”, falou Michele. “Tudo bem”, respondeu. Marisa era a única solteira do grupo. Tinha dificuldades em arrumar namorados e todos se compadeciam com aquilo. Por isso a chamavam para as festinhas íntimas. “Vou à casa dos meus pais, depois compro o macarrão e volto”, disse.

Desceu o prédio, cruzou com Marisa no elevador, entrou no carro e ligou para os pais. Eles estavam viajando. Então só foi na padaria, comprou algumas guloseimas, o macarrão, o molho e voltou pra casa. Conversou alguns minutos com o porteiro. Como sempre, avisou da festa. Subiu, abriu a porta da sala e viu um sutiã no sofá. Estranhou a bagunça. Michele sempre fora organizada. Cruzou o corredor, entrou no seu quarto e viu sua namorada apertar fortemente os seios da amiga, preparando-o para beijá-lo. A nudez tão nítida das duas empalidecia o semblante derrotado do namorado. O que era aquilo?

Ele fora traído. Sua namorada era lésbica e parecia mais excitada do que todas as transas que tivera com ele. Tudo passava muito rápido por sua mente. Lúcio buscou a maçaneta. Equilibrou-se. Michele saiu de cima do corpo da amiga e catou o canto da cama. Ela acabara de soltar um grito fino, de espanto. Puxara o lençol para encobrir os seios e apalpou a cama duas vezes. Procurava o sutiã. Estava na sala. Calou-se, então, sem conseguir se mexer. Lúcio também. A amiga solteira havia levado a mão à testa e sussurrado um caralho! como se estivesse diante do fim do mundo. Lúcio olhou calmamente para as duas e pediu: “Vou tomar um banho. Quero que vocês se vistam e saiam da minha casa”.

Deixou as compras na cozinha e entrou no banheiro. Banhou-se com água, com lágrimas e com decepção. Seu coração batia forte. “Nada do que se constrói é deixado pra trás”, lembrava da frase que já não lhe fazia sentido. Prometeu nunca mais encontrar a sua companheira de quatro anos. E assim o fez. Às sextas-feiras, quando sai da padaria com o molho para o macarrão, pensa: “Tudo que se constrói fica pra trás”. Ele modificou a frase. Deixou-a mais segura e realista. Assim pôde se apegar sem crer em eternidade. Entendeu que, na vida, nada é pra sempre.

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