Foi o que me disse a vizinha assim que abri a porta. Era domingo e nós terminávamos um almoço tardio – como sempre são os almoços de domingo – regado a muito vinho e um delicioso risoto de funghi preparado pela Clarinha.
Não sei se foi o vinho, mas não me recordo de estarmos rindo tanto assim, a ponto de incomodar a vizinha. Aliás, desde quando alegria incomoda alguém?
- Como?
Foi a única reação que tive.
- Eu quero saber, Sr. Tiago, a razão de toda essa euforia, toda essa alegria, todas essas gargalhadas. Por quê? O que traz a vocês dois tanta felicidade? Vocês são sozinhos! Não tem amigos, não tem filhos, não tem família. Estão aí, só os dois, e parecem que estão na maior festa do mundo. Dá para explicar? Nem um cachorro vocês têm!
Eu e Clara havíamos nos mudado a pouco tempo para aquela casa. Assim que nos estabelecemos, a vizinha – Neide é o nome dela – veio bater à nossa porta. Trouxe um cartão de boas-vindas feito pelos seus dois filhos. Os meninos deviam ter entre 5, o mais novo, e 10 anos, o mais velho. Eles desenharam em uma folha de papel um casal, que presumi sermos nós, e uma família com pai, mãe e dois pequenos meninos de cabelos arrepiados, que imaginei como sendo eles. No alto da folha, em letras de forma estava escrito: BEM VINDOS
Ela foi simpática e disse que estaria à disposição para tudo que precisássemos. Perguntou sobre nossos filhos – os quais ainda não estamos pensando em ter –, convidou Clara a conhecer o grupo de ginástica do bairro, indicou uma diarista para ajudar com os serviços domésticos. E prometeu um filhote de Pastor Alemão da próxima ninhada de seu casal de cães. São premiados os bichinhos.
Mas o que mais me assustou foi a relação que ela criou entre sermos sozinhos X sermos felizes.
- Como assim, sozinhos?
Foi tudo o que consegui retrucar. A essa altura, o gênio cricri da Clara já estava atrás de mim na porta, bufando e querendo saber o que estava acontecendo.
Tá certo que a casa era muito grande para só nós dois. Mas isso não tem nada a ver com nossa família e amigos. A mãe da Clara – sogras! – passava sempre por lá. Minha mãe – sogras, de novo! – não deixava passar uma semana sequer sem dar o ar de sua graça. Meus irmãos e uma amiga-irmã da Clara – ela não tem irmãos de sangue – já dormiram várias vezes no quarto de hóspedes. E nossos amigos também sempre aparecem para um jantar, ou almoço, ou só mesmo pra jogar conversa fora. Não tinha essa de sozinhos.
- Sozinhos! S-O-Z-I-N-H-O-S. Sem ninguém para fazer companhia. Sem crianças correndo e gritando para preencher o vazio dessa casa. Sem um cachorro para fazer guarda. Sem uma empregada para varrer e lavar suas roupas. Sós. Vocês não são uma família normal. E ainda assim estão aí nessa algazarra, rindo, ouvindo música, cozinhando e bebendo vinho. Como vocês fazem isso sem ter alguém pra partilhar?
- Acho que a gente se basta, dona Neide. É só isso. Um faz companhia pro outro e não precisamos de muito mais que isso. Crianças serão benvindas, quando for o momento certo. Cães serão ótimas companhias, quando quisermos ter outra companhia. E nossas famílias, bem... nossas famílias estão sempre por aqui. Mas acho que a resposta mais direta para a senhora é só mesmo essa: a gente se basta, se completa e assim tá muito bom. Não precisamos de uma vida tão cheia e tão completa. Pelo menos não no sentido que a senhora diz. Não com essas coisas que a senhora considera importantes.
Ela murchou e começou a chorar. Chorava como há muito tempo não via ninguém chorando. Soluços doloridos, um choro raivoso. Clarinha ofereceu sua taça de vinho. Ela recusou, virou as costas e saiu andando. Um pouco mais à frente virou-se, balançou a cabeça e pediu desculpas.
Uma semana depois, também já no fim de um almoço – com amigos, registre-se – veio nova batida na porta.
- Boa tarde. Vim buscar a mudança da dona Neide.
- Dona Neide? É a casa amarela. Aquela ali do outro lado da rua.
- Desculpa! A dona ligou tão aperreada que nem anotei o endereço direito. Pensei que fosse casa 12.
- Tudo bem.
- Boa tarde pro senhor. Muito obrigado.
- Por nada. Bom trabalho pra você.
Neide tinha descoberto que o marido a traía. Viu ruir toda a estrutura de boa família que ela vinha construindo. E surtou. Parece que agora está morando lá do outro lado da cidade e se consultando com um psicólogo para poder entender que é possível ser feliz sozinha. Ou com alguém que se ama.
Tão difícil esse processo de descoberta de que a felicidade depende apenas de nós mesmos e que a partir disso é que se pode ser feliz com o outro...
ResponderExcluirTão difícil que as pessoas compreendam que apesar do que elas acham que deve ser importante para nós, somos felizes assim mesmo...
Tão difícila a gente compreender que não adianta falar ou explicar isso aos outros, que é um processo ímpar onde não cabem palavras e as ações falam mais alto...
ótimo texto, parabéns!
Eu me importei.
ResponderExcluirBelíssima história de um momento. Tive vontade de mandar a Neide praquele lugar. Me incomoda quem se incomoda com a felicidade alheia, seja essa inveja pautada por uma grande família ou por alguém que consegue ser feliz só, com seus livros e vinhos.
Parabéns, acho que esse foi um dos melhores dos seus que eu já li.
Nossa, realmente verdade a história... Muita gente vive assim. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirNossa, que coisa. Super me identifiquei, pois eu e meu noivo moramos em uma casa grande e "sozinhos", mas também fazemos muita algazarra e somos imensamente felizes. Um brinde (de vinho, claro) aos casais que se bastam!
ResponderExcluirPatrícia Lemos
http://www.patiffaria.blogspot.com/
Como tem Neide's pela nossa vida... isso é fato. Belissimo texto.
ResponderExcluirquem nunca teve uma Neide na vida?
ResponderExcluirSim! A Felicidade incomoda. Muito bom vc traduzir isso dessa forma, amigo!
Não importa se for uma, duas, cem ou mil, o importante é descobrir o que faz vc feliz (by Pão de açúcar).
Adorei!
É impossível ser feliz sozinho?
ResponderExcluirÉ que hoje a gente procura um monte de coisa lá fora para tentar ser feliz, que esquece que isso é um estado de espírito, de presença, de decisão.
Mas as Neides têm seu papel também. Talvez Tiago nunca tívesse se atentado para o seu bastar tão cheio de si que poderia até ser vazio.
Nossa a Pan ta super certa, as Neides tão ai pra nós mostrar, o quão somos felizes. Bela história!
ResponderExcluirGostei muito do texto, tanto que comecei a seguir seu blog.
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