sábado, 30 de dezembro de 2006

Choque terminal

Vou dar cabo da minha vida. Puta que pariu! Vou sim, vou dar cabo dessa merda de vida! Que se foda! Eu vou dar cabo da minha vida. Que se exploda a merda daquela empresa que paga uma miséria e me explora como um burro de carga.

Eu vou dar cabo da minha vida. Danem-se a Ritinha, Mariana e todas aquelas outras vagabundas interesseiras que não me amam. Vou dar cabo da minha vida e pronto. Melhor amigo do homem uma ova, o Tico sempre foi um vira-latas preguiçoso. Não dá um latido sequer se aparecer um ladrão em casa. Vou dar cabo da minha vida.

Meus pais morreram e não tenho nenhum irmão. Vou dar cabo da minha vida sem se preocupar com família. Carro velho, desgraçado que só me deixa na mão. Quando não é motor, é roda, ou escapamento. Pro inferno! Vou dar cabo da minha vida.

Amigos-da-onça, bando de filhos-da-puta que só sabem falar mal pelas costas e fingir na sua cara. Eu não sei cobrar escanteio? Não agüento o tranco da pelada? Pra merda! Eu vou dar cabo da minha vida!

E ainda esse chuveiro fodido que mal esquenta a água. Mas para que tomar banho? Melhor morrer como um porco imundo. Definitivamente, vou dar cabo da minha vida.

Fechou o ralo com um saco plástico e deixou o box do banheiro empoçar. Segurou com a mão direita o chuveiro. Com a esquerda, o velho secador de cabelos da mãe, lembrança das tardes de sábado quando ela se arrumava para ir às compras. Ligou na tomada e morreu eletrocutado.

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

A Ceia dos Mesquita

A ceia estava pronta. Quer dizer, pronta na verdade estava a casa, toda emperiquitada. A ceia estava quase pronta. Naquele ano, Paulinho Mesquita prometera se encarregar do peru. Mas para ele, não poderia ser qualquer peru. Ele tinha que matar, depenar e temperar. "Tem coisa mais sem graça do que comprar um peru no supermercado e esperar que o pino vermelho indique que a ave está no ponto?", questionava Paulinho para sua tia Carmella, típica italiana que fazia de tudo para participar dos afazeres, até mais do que o necessário, só para cobrar dos familiares depois. "Só eu que trabalho nesta casa".

Todo ano era a mesma coisa. Mas esse não. Paulinho proibiu tia Carmella de participar da preparação do peru. E também proibiu que ela pusesse os pés na cozinha. Desta vez ela não conseguiria beliscar as guloseimas espalhadas pelos balcões. Ele tinha que fazer tudo sozinho, afinal seria uma ceia inesquecível. Saiu cedo de Brasília, em direção ao Núcleo Bandeirante. Ao chegar na entrada da cidade, dobrou a esquerda, passou três sinais, fez o balão à direita e chegou. Não que tenha sido tão rápido assim, até porque a chuva que castiga o Planalto Central nessa época do ano fez alguns buracos naquele asfalto já desgastado pelo tempo. Mas enfim, ele chegou.

Com um facão que ele mesmo afiou antes de sair de casa, pulou para fora de seu carro e passou a porteira do sítio do seu Freire. Não precisava estar motorizado a partir daquele ponto. Os perus já podiam ser vistos. Os muitos perus que se espalhavam pelo sítio. Paulinho parou. Respirou. Fechou os olhos. Abriu os olhos e correu. Sem respirar, ele correu. Mas no meio do caminho lembrou que nunca tinha matado sequer uma galinha, imagine então um peru. Não que matar um peru seja tão diferente de matar uma galinha. Mas técnicas são técnicas e não se discute.

O velho Freire percebeu que Paulinho, de um súbito pique, havia congelado. Riu consigo mesmo, lembrando da primeira vez em que matara um peru. Não existiam sequer técnicas que diferenciavam as maneiras de se matar os diversos tipos de ave. Lembrou-se que foi ele mesmo, em pessoa, que criou as técnicas. Que foi ele quem escreveu sobre nisso. Que foi ele quem ganhou o famoso prêmio Avicultor do Ano, pela sociedade de avicultura do Núcleo Bandeirante. Paulinho desistiu. Parou. Congelou, como já havia percebido o velho. Voltou atrás e foi ao encontro de Freire.

- Seu velho viado. Nunca tinha me falado desta história de técnica. E agora, o que eu faço. Prometi, na minha casa, que mataria o peru, depenaria e temperaria.

- Mas eu não disse nada de técnica. De onde você tirou isso, menino - disse o velho, surpreso."

- Eu percebi que a curvatura angular dos perus são diferentes. Lembrei também que nunca havia matado uma galinha, mas sei que existe técnica para matar a galinha. E notei que você, com essa cara de otário, tinha um sorriso no cantinho da boca, desde que estacionei meu carro.

- Então eu acho que pensei errado sobre você. Pensei que fosse outro desses moleques que não reconhecem e nem dão valor ao meu trabalho. Posso te ensinar a matar um peru, mas isso pode demorar. Te aconselho a aceitar que eu mate o peru. Você conta para a sua família e volta aqui depois do ano novo.

Dito e feito. Paulinho aceitou. Mas acordou. E quando acordou percebeu que estava em casa com sua tia Carmella. Ela reclamava como sempre. E se certificava se o peru semi-pronto já estava com o pino vermelho levantado. Paulinho olha para o lado. Em sua cabeceira, ele lê o título do livro: Manual de um bom jornalista: técnicas são técnicas e não se discute. Na casa dos Mesquita tudo continuava o mesmo. Que sonho bizarro!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Dois traidores

Tudo estava normal. Amigos se encontravam num bar, bebiam feito loucos e, procurando dispensar qualquer limite, procuravam a casa de alguém para estender a noite. Dito e certo. Depois das 3h, foram para a casa do Márcio, agradável homem de fora que fazia animados encontros no seu pequeno apartamento. Todos gostavam, afinal, a casa era nossa!

Cervejas na mão, violão também, a farra continuava. Naquela noite as mulheres e homens eram todos conhecidos e, naturalmente, afeitos ao “se rolar rolou”. Fiquei sentado, tranqüilo, tomando uma latinha e conversando com amigos do trabalho. Patrícia, uma amiga feia, mas sensual, era a mais prejudicada por algumas doses de cachaça e outros muitos goles de cerveja. Dançava, rebolava e cantava, excitando os colegas.

Foi naquele encontro que percebi definitivamente que uma postura minimamente sem vergonha pode denunciar os extintos mais traidores de uma mulher. Patrícia, a feia sensual, sentou no colo do Márcio. Eles eram mais amigos que todos nós lá. Fora Paty que apresentara a namorada de Márcio, pessoa a quem ele parecia gostar muito e que não estava lá nessa noite. Paty e a namorada eram melhores amigas... de infância!

O fato, no mínimo estranho, ocorreu quando ela, ainda sentada nas pernas do dono da casa, agarrou sua mão discretamente, a apertou e rebolou em seu colo. Fez uma vez, e mais uma e mais uma... e várias vezes! Talvez ela pensasse que ninguém estivesse de olho naquele amasso no meio da sala. Mas os dois não viram que vimos.

Tempos mais tarde percebi que ambos sumiam e apareciam minutos depois. Entravam no quarto, na cozinha, no banheiro. Paty e o namorado de sua melhor amiga, cúmplices de um crime repleto de imperfeições. Num desses sumiços, resolvi investigar e entrei no quarto de sopetão. Num leve abrir da porta, escutei um leve gemido. Resolvi escancará-la rapidamente, para que não acreditassem que eu estava ali espiando. Abri a porta com força e fiz com que pensassem que tudo fora um acidente. Tudo mesmo.

E foi o que aconteceu. Com um olhar, dei-lhes segurança para que pensassem que os beijos que Márcio dava nos fartos seios da feia sensual eram frutos de um desastre. Dei-lhes firmeza para acreditarem que as calças baixas do rapaz que tanto parecia gostar da namorada era o típico imprevisto de uma noite regada a bebidas variadas. Também fui fiador da mão de Paty, que apertava forte o pênis de Márcio, parecendo querer-lhe dentro dela urgentemente.

A cena chocou-me, mas com leveza. Quando fechei a porta, devolvi-lhes a confiança para que continuassem a ejetar todo o calor que lhes consumia desde a mexida no colo ao som de funk. Recompus-me do inconveniente. Os dois saíram do quarto como se estivessem sendo presos em flagrante delito. Sorriram sem graça e tentaram incursar novamente na animação da festa.

Não durou muito tempo. O tesão foi embora para dar lugar ao remorso de terem cometido um crime “duplamente qualificado” contra uma só pessoa. E eu, definitivamente, percebi que aquele rebolado sem vergonha não era fantasia, mas, sim, um retrato do que a bebida faz com mulheres exageradamente afeitas ao prazer. Passei a noite com dois traidores.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Gente

Os dois no cinema. Ele lá com os pés para cima, sobre a cadeira da frente. Todo mundo entrando na sala e ela incomodada porque alguém poderia querer sentar-se ali e não sentaria por causa do pé dele. Até que ela disse: “Tira o pezão daí! Esse lugar é para gente e não para pé.”

Ele tirou, mas retrucou: “E quem disse que meu pé não é gente?” E ela: “Claro que não! Você é gente, seu pé faz parte de você, mas ele sozinho não é gente.” Depois de um minuto de silêncio dos dois ela veio com a pergunta: “Mas afinal, o que é gente? É uma pessoa inteira, com cabeça, tronco e membros?”

Ele pensou e respondeu: “Não, pense em alguém amputado? Seja um braço, ou uma perna. Não é gente?” E ela: “É, mas o seu pé sozinho não pode ser gente. Ele tem que ter movimento.” Ele, muito gozador respondeu: “Então o rabo da lagartixa pode ser gente. Você corta e o rabinho fica lá se mexendo sozinho.” Ela riu, mas não concordou e encontrou outra possibilidade: “Gente, então, é alguma coisa viva e inteligente.” E imediatamente descartou a hipótese: “Se bem que não, tem tanta gente burra e tanto animal inteligente. Essa não dá!” “Já sei, gente é quem tem consciência!”, continuou para logo desistir: “Não, alguém que esteja em coma não está consciente, mas é gente...Que questão mais filosófica essa, né? Difícil...” Mas logo o filme começou e ela esqueceu-se daquilo.

Ele não esqueceu e decidiu procurar saber o que era gente. A primeira idéia foi o dicionário: 1. Quantidade maior ou menor de pessoas indeterminadas; povo 2. Determinado número de pessoas que têm em comum certas características 3.Número indeterminado de pessoas, ou mesmo uma só pessoa, alguém 4. O gênero humano, a humanidade 5. O ser humano, homem, pessoa 6. Habitantes de determinada localidade, população, povo 7. Partidários de uma idéia, companheiro, camarada 8. Família ou empregados.

Aquilo não o deixou satisfeito. “Gente é muito mais coisa”, pensava. Foi então à internet e nada encontrou a não ser links para páginas que falavam sobre gente famosa ou sobre a definição de gente bonita. Mas nada que lhe fosse ser útil. Decidiu então fazer pesquisa de campo. Perguntou à mãe, à avó, tio, tia, primo, vizinho e cada um foi dando uma resposta diferente: “Gente sou eu, é você”, “Gente são as pessoas”, “Gente é quem vive, quem tem alguma coisa”, “Gente é tudo que é vivo. Cachorro, gato, homem, planta”, foram algumas das respostas que ele recebeu. Só que ainda não era essa a resposta que procurava

Não sabia mais onde procurar a resposta certa para sua pergunta e sentou. Cansado de não conseguir o que queria ficou ali, parado por um minuto pensando no que diria para ela. Ela que era o seu grande amor, a pessoa de quem ele mais gostava no mundo. Aquela que acordava e dormia em seu pensamento e para quem ele não mediria esforços para achar uma resposta para sua pergunta. Não podia decepcioná-la, tinha que encontrar a melhor resposta.

Pensativo, sozinho, ele ficou quieto, em um silêncio tão profundo que pode ouvir o seu coração bater. Foi aí que realmente entendeu o que era ser gente e saiu correndo e andando devagar, gritando e falando baixo, sorrindo e chorando. Dançava, pulava, gargalhava enquanto chamava o nome dela.

Ela, da janela de seu quarto, um tanto assustada com todo aquele alvoroço, perguntou: “O que é isso? O que está acontecendo?” E ele apenas respondia: “Eu já sei! Eu descobri a resposta!” “Resposta para o que, meu deus? Do que é que você está falando?” Ele pediu a ela que descesse pois assim lhe explicaria melhor.

Deu-lhe um beijo e segurou-a em seus braços. Olhava para seus olhos e via aquele brilho que sempre o deixava louco. Então, explicou que gente podia ser tudo: animal, planta, povo, alguém, ser humano, família e qualquer outra coisa que tinham lhe dito as pessoas ou o dicionário. Mas uma coisa era fundamental para ser gente. Um coração. Só com um coração se é gente. Pois só um coração nos permite amar e ser amado. E era por isso que ele se sentia gente: porque amava e era amado. Então, não importava se era uma pessoa amputada, em coma, burra ou até mesmo um rabinho de lagartixa. O que valia era o amor. Se o rabinho amasse outro rabinho e fosse correspondido, ele era gente que nem qualquer outro. Ficavam lá, os dois rabinhos apaixonados balançando sem seus corpos.

Os dois no cinema. Ele lá com os pés para cima, sobre a cadeira da frente. Ela - que agora sabia o que era gente - levantou os seus e juntou-os aos dele. Os quatro pezinhos que se amavam, com seus donos que se amavam. Coisa de gente.