Os dois no cinema. Ele lá com os pés para cima, sobre a cadeira da frente. Todo mundo entrando na sala e ela incomodada porque alguém poderia querer sentar-se ali e não sentaria por causa do pé dele. Até que ela disse: “Tira o pezão daí! Esse lugar é para gente e não para pé.”
Ele tirou, mas retrucou: “E quem disse que meu pé não é gente?” E ela: “Claro que não! Você é gente, seu pé faz parte de você, mas ele sozinho não é gente.” Depois de um minuto de silêncio dos dois ela veio com a pergunta: “Mas afinal, o que é gente? É uma pessoa inteira, com cabeça, tronco e membros?”
Ele pensou e respondeu: “Não, pense em alguém amputado? Seja um braço, ou uma perna. Não é gente?” E ela: “É, mas o seu pé sozinho não pode ser gente. Ele tem que ter movimento.” Ele, muito gozador respondeu: “Então o rabo da lagartixa pode ser gente. Você corta e o rabinho fica lá se mexendo sozinho.” Ela riu, mas não concordou e encontrou outra possibilidade: “Gente, então, é alguma coisa viva e inteligente.” E imediatamente descartou a hipótese: “Se bem que não, tem tanta gente burra e tanto animal inteligente. Essa não dá!” “Já sei, gente é quem tem consciência!”, continuou para logo desistir: “Não, alguém que esteja em coma não está consciente, mas é gente...Que questão mais filosófica essa, né? Difícil...” Mas logo o filme começou e ela esqueceu-se daquilo.
Ele não esqueceu e decidiu procurar saber o que era gente. A primeira idéia foi o dicionário: 1. Quantidade maior ou menor de pessoas indeterminadas; povo 2. Determinado número de pessoas que têm em comum certas características 3.Número indeterminado de pessoas, ou mesmo uma só pessoa, alguém 4. O gênero humano, a humanidade 5. O ser humano, homem, pessoa 6. Habitantes de determinada localidade, população, povo 7. Partidários de uma idéia, companheiro, camarada 8. Família ou empregados.
Aquilo não o deixou satisfeito. “Gente é muito mais coisa”, pensava. Foi então à internet e nada encontrou a não ser links para páginas que falavam sobre gente famosa ou sobre a definição de gente bonita. Mas nada que lhe fosse ser útil. Decidiu então fazer pesquisa de campo. Perguntou à mãe, à avó, tio, tia, primo, vizinho e cada um foi dando uma resposta diferente: “Gente sou eu, é você”, “Gente são as pessoas”, “Gente é quem vive, quem tem alguma coisa”, “Gente é tudo que é vivo. Cachorro, gato, homem, planta”, foram algumas das respostas que ele recebeu. Só que ainda não era essa a resposta que procurava
Não sabia mais onde procurar a resposta certa para sua pergunta e sentou. Cansado de não conseguir o que queria ficou ali, parado por um minuto pensando no que diria para ela. Ela que era o seu grande amor, a pessoa de quem ele mais gostava no mundo. Aquela que acordava e dormia em seu pensamento e para quem ele não mediria esforços para achar uma resposta para sua pergunta. Não podia decepcioná-la, tinha que encontrar a melhor resposta.
Pensativo, sozinho, ele ficou quieto, em um silêncio tão profundo que pode ouvir o seu coração bater. Foi aí que realmente entendeu o que era ser gente e saiu correndo e andando devagar, gritando e falando baixo, sorrindo e chorando. Dançava, pulava, gargalhava enquanto chamava o nome dela.
Ela, da janela de seu quarto, um tanto assustada com todo aquele alvoroço, perguntou: “O que é isso? O que está acontecendo?” E ele apenas respondia: “Eu já sei! Eu descobri a resposta!” “Resposta para o que, meu deus? Do que é que você está falando?” Ele pediu a ela que descesse pois assim lhe explicaria melhor.
Deu-lhe um beijo e segurou-a em seus braços. Olhava para seus olhos e via aquele brilho que sempre o deixava louco. Então, explicou que gente podia ser tudo: animal, planta, povo, alguém, ser humano, família e qualquer outra coisa que tinham lhe dito as pessoas ou o dicionário. Mas uma coisa era fundamental para ser gente. Um coração. Só com um coração se é gente. Pois só um coração nos permite amar e ser amado. E era por isso que ele se sentia gente: porque amava e era amado. Então, não importava se era uma pessoa amputada, em coma, burra ou até mesmo um rabinho de lagartixa. O que valia era o amor. Se o rabinho amasse outro rabinho e fosse correspondido, ele era gente que nem qualquer outro. Ficavam lá, os dois rabinhos apaixonados balançando sem seus corpos.
Os dois no cinema. Ele lá com os pés para cima, sobre a cadeira da frente. Ela - que agora sabia o que era gente - levantou os seus e juntou-os aos dele. Os quatro pezinhos que se amavam, com seus donos que se amavam. Coisa de gente.