terça-feira, 26 de dezembro de 2006

A Ceia dos Mesquita

A ceia estava pronta. Quer dizer, pronta na verdade estava a casa, toda emperiquitada. A ceia estava quase pronta. Naquele ano, Paulinho Mesquita prometera se encarregar do peru. Mas para ele, não poderia ser qualquer peru. Ele tinha que matar, depenar e temperar. "Tem coisa mais sem graça do que comprar um peru no supermercado e esperar que o pino vermelho indique que a ave está no ponto?", questionava Paulinho para sua tia Carmella, típica italiana que fazia de tudo para participar dos afazeres, até mais do que o necessário, só para cobrar dos familiares depois. "Só eu que trabalho nesta casa".

Todo ano era a mesma coisa. Mas esse não. Paulinho proibiu tia Carmella de participar da preparação do peru. E também proibiu que ela pusesse os pés na cozinha. Desta vez ela não conseguiria beliscar as guloseimas espalhadas pelos balcões. Ele tinha que fazer tudo sozinho, afinal seria uma ceia inesquecível. Saiu cedo de Brasília, em direção ao Núcleo Bandeirante. Ao chegar na entrada da cidade, dobrou a esquerda, passou três sinais, fez o balão à direita e chegou. Não que tenha sido tão rápido assim, até porque a chuva que castiga o Planalto Central nessa época do ano fez alguns buracos naquele asfalto já desgastado pelo tempo. Mas enfim, ele chegou.

Com um facão que ele mesmo afiou antes de sair de casa, pulou para fora de seu carro e passou a porteira do sítio do seu Freire. Não precisava estar motorizado a partir daquele ponto. Os perus já podiam ser vistos. Os muitos perus que se espalhavam pelo sítio. Paulinho parou. Respirou. Fechou os olhos. Abriu os olhos e correu. Sem respirar, ele correu. Mas no meio do caminho lembrou que nunca tinha matado sequer uma galinha, imagine então um peru. Não que matar um peru seja tão diferente de matar uma galinha. Mas técnicas são técnicas e não se discute.

O velho Freire percebeu que Paulinho, de um súbito pique, havia congelado. Riu consigo mesmo, lembrando da primeira vez em que matara um peru. Não existiam sequer técnicas que diferenciavam as maneiras de se matar os diversos tipos de ave. Lembrou-se que foi ele mesmo, em pessoa, que criou as técnicas. Que foi ele quem escreveu sobre nisso. Que foi ele quem ganhou o famoso prêmio Avicultor do Ano, pela sociedade de avicultura do Núcleo Bandeirante. Paulinho desistiu. Parou. Congelou, como já havia percebido o velho. Voltou atrás e foi ao encontro de Freire.

- Seu velho viado. Nunca tinha me falado desta história de técnica. E agora, o que eu faço. Prometi, na minha casa, que mataria o peru, depenaria e temperaria.

- Mas eu não disse nada de técnica. De onde você tirou isso, menino - disse o velho, surpreso."

- Eu percebi que a curvatura angular dos perus são diferentes. Lembrei também que nunca havia matado uma galinha, mas sei que existe técnica para matar a galinha. E notei que você, com essa cara de otário, tinha um sorriso no cantinho da boca, desde que estacionei meu carro.

- Então eu acho que pensei errado sobre você. Pensei que fosse outro desses moleques que não reconhecem e nem dão valor ao meu trabalho. Posso te ensinar a matar um peru, mas isso pode demorar. Te aconselho a aceitar que eu mate o peru. Você conta para a sua família e volta aqui depois do ano novo.

Dito e feito. Paulinho aceitou. Mas acordou. E quando acordou percebeu que estava em casa com sua tia Carmella. Ela reclamava como sempre. E se certificava se o peru semi-pronto já estava com o pino vermelho levantado. Paulinho olha para o lado. Em sua cabeceira, ele lê o título do livro: Manual de um bom jornalista: técnicas são técnicas e não se discute. Na casa dos Mesquita tudo continuava o mesmo. Que sonho bizarro!

3 comentários:

  1. Putz!
    Bom demais!
    Com certeza a melhor história desse natal!
    Que orgulho...
    hahahahahahaha

    Beijos da Fran

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  2. A história é muito boa mesmo. Mas esse negócio de "Velho Freire" parece uma homenagem... ou uma sacanagem! Heheheh.. Parabéns, Felipe.. parabéns!

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  3. o nome do peru comido na ceia era Cesséu?!?!?!

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