quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Somos Todos Drogados

O maior vício do ser humano é outro ser humano. Nenhuma substância pode ser mais entorpecente do que aquela por quem se tem um desejo mais forte que sua própria força. E para esse mal não há sequer uma clínica, ou tratamento capaz de evitar as tão dolorosas crises de abstinência.

Você não vai escapar dessa situação. Não pense que estou falando apenas de paixão, e você como o maior dos insensíveis acha que jamais irá se apaixonar. Não pense como pensam as mães dos jovens que começam fumando maconha e acabam morrendo de overdose de heroína: “Comigo não vai acontecer”. Não pense.

Pois estamos todos sujeitos a ficarmos viciados em alguém. Seja um amor juvenil, um amigo para toda a vida, ou um parente próximo. Você, sem dúvida, ainda não percebeu, mas é viciado em alguém. Um amigo, mãe, pai, irmãos. Qualquer um deles pode ser a sua droga, a sua dor, a sua dependência, o seu medo de perda. E também não vá achando que agora que acordou para o problema, conseguirá se livrar da situação. Não. Não é tão simples.

Sabe aquele amigo que por mais que você se afaste, sempre volta? Você é a droga dele e, muito provavelmente, ele também é a sua. E mesmo com muita tentativa, não vai ser agora que sumirão das vidas um do outro, achando que estarão livres do vício.

E por que não a sua mãe? Mesmo grande, independente, de barba na cara, você acha que conseguiu se desvencilhar dela? Jamais. As mães são drogas eternas e não fazem tanto mal. Assim como a cafeína. Se você largar, terá dor de cabeça.

O PIOR – Como já disse, não existe tratamento para a crise de abstinência, nesse caso, também chamada de saudade. Quando você não tem por perto a sua droga, dá uma dor danada. É uma falta que se sente, como se faltasse parte de você. É uma falta de si mesmo. Uma ausência do outro, que se traduz em uma perda de você.

A droga do amor, companheiro, é como respirar. Não dá para viver sem. Não dá. E se você tenta, é também como tentar ficar sem respirar. Dá para segurar uns segundos; alguns, seguram por minutos. Mas o instinto de sobrevivência fala mais alto e você acaba soltando a respiração. E volta a encher os pulmões de ar.

Pois quando você pensa que pode escapar do vício da paixão, ele vem e te acerta bem no meio do peito com a danada da saudade. E você luta para não ir atrás da droga. Prende a respiração. Consegue por pouco tempo e logo depois, volta a encher o peito de paixão.

Mas você, insensível. Você, intocável. Você, inapaixonável (existe este termo?). Você não saberá o que é o pior do vício. Difícil dizer se isso é bom, ou ruim. Mas é fato, que você não saberá. Você não sentirá o que é perder a droga mais gostosa de se usar. Aquela que “te dá onda” só de pensar. Ou ouvir, cheirar, tomar, sentir, possuir.


Essa abstinência-saudade, caro amigo, você nunca sentirá. E insisto em dizer que não sei se te digo isso com um sorriso, ou com uma lágrima no rosto. Mas dessa crise, que te faz chorar, te faz enlouquecer e te faz até pensar em usar outras drogas, você não provará. Porque só um grande amor perdido é capaz de fazer com que alguém sinta a verdadeira dor da saudade. Essa maldita saudade.

domingo, 26 de agosto de 2007

Perto demais

Aquele espaço realmente não era apropriado para tal loucura. Ele chegou primeiro. Escolheu o assento no canto, longe da passagem de olhos curiosos. Longe de conhecidos, próximos, longe da vida que insistia em sufocá-lo e indicá-lo descaminhos, de amor, sobreturo. Ficou ali uns 15 minutos. Ela não chegava. A sala já estava escura. O trailler começava. Um pouco vazia, aquela sessão seria ótima. Mas não sem ela ao seu lado.

Aguardou mais uns cinco minutos. Julia Roberts encontrar-se com Jude Law. Ele precisava de fotos. E ela precisava ganhar dinheiro as tirando e cobrando por elas. As cenas de Perto Demais pouco importavam. Só incomodava mesmo aquela ausência, sentida na pele e na alma por muitos dias, que agora se fazia latente e chata.

Antes de sair de casa, ele avisou: minha mulher estará fora, na casa da mãe. Disse que vou ao cinema, já que não faço isso há um tempão. Hoje é um bom dia para nos encontrar-mos. Ela concordou. Avisou que seu marido precisou fazer uma viagem rápida, de um dia, e também iria ao cinema e ao seu encontro.

O problema é que são casados, vivem numa cidade pequena e correm sério risco de serem pegos uma ou outra hora. Combinaram então assim: ele chegaria primeiro, sentaria em um assento qualquer e a aguardaria. Ela teria uma chegada mais discreta. Entraria na sala quando as luzes já tivessem apagado e o filme começado. Sentaria despretenciosamente ao seu lado, como se estivesse ali um desconhecido.

Mas não combinaram, entretanto, como um acharia o outro. Ele estava na grande sala, esperando por ela. Mas só as luzes da tela e o brilho dos atores iluminavam as dezenas de poltronas. E isso não bastava. Principalmente em se tratando de um filme que fere a ilusão do amor eterno e banaliza a traição, inserindo-a no cotidiano das pessoas sem tomar conhecimento de que alguém ainda acredita que pode ficar ao lado de outra pela vida toda, sem traições ou novas paixões.

Tudo baboseira. Eles próprios não poderiam acreditar no amor eterno. Por seus respectivos, o amor já diminuira e seria facilmente assassinado. Mas sentiam que com eles era diferente. Faltava apenas tempo e espaço. Não tinham isso. Eis ai a razão do encontro no cinema, local público e perigoso. Queriam eles ter um dia de namorados, andar de mãos dadas. Queriam eles abandonar as suas famílias e se aventurar no novo. Faltava, no entanto, coragem de destruir o que demoraram para construir e de recomeçar. Não conseguiam isso e viviam de aperitivos.

15 minutos de filme. Nada dela. Alguma coisa poderia ter acontecido. Ele resolveu olhar para frente, acreditar que ela não viria e tentar conter a frustração. Começou a entender a história. Por um momento, decifrou todo o enredo e não gostou nada do que lhe foi revelado. A confusão amorosa ali descrita é, desesperadamente, parecida com o que ele vivia naquele momento.

Misturou-se então um sentimento de culpa, apego, saudade, alegria e tristeza. Sua vida não estava boa. A dela também não. Sem querer, uma lágrima desceu do canto do seu olho, percorrendo a face até parar no seu lábio. No filme, em sua frente, Jude Law chorava a perda de um amor que só complicou sua vida.

Ele fechou os olhos, apertando para conter mais lágrimas que se anunciavam e sentiu uma mão macia tocar-lhe perto da testa e descer pelo rosto, seguindo o rastro de seu choro. Atravessou a face e, molhada, a mesma mão deitou em seu ombro, enxugando-se em sua camisa. Era ela. Estava na poltrona de trás. Ele pegou sua mão e apertou.

Estavam ali, fisicamente distante para namorados em pleno cinema. Mas, envoltos em amor e limitados pela vida, sentiam-se perto demais. E passaram o resto da sessão de mãos atadas, atados a dúvidas, culpa, medo e uma enorme felicidade.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

REC

Ela maquiava-se sentada em frente ao espelho. Primeiro, uma base para esconder algumas imperfeições no rosto. As olheiras, uma mancha de sol no nariz e uma espinha que insistia em aparecer no canto da boca.

Veio o batom. Uma cor suave, quase imperceptível. Depois o gloss para dar brilho. O pincel acariciava levemente seus lábios num vai e vem ritmado. Pinçou, então, as sobrancelhas. Os fios mais rebeldes foram embora deixando um fino rastro de pelos. Passou, por último, o rímel nos cílios.

O espelho observava pacientemente cada movimento. E quando digo que observava, é porque até mesmo o reflexo dela ficou paralisado com aquela cena, tamanha beleza e delicadeza contida nos gestos daquela moça.

Tirou a toalha da cabeça e deixou cair sobre os ombros os cabelos, ainda um pouco molhados. Negros, lisos, leves. Parecia uma propaganda de xampu. Penteou-os com cuidado. Fio a fio, cada um recebeu o carinho da escova.

Levantou-se da cadeira. Nua. O espelho quase se despedaçou. Não porque fosse feia, muito pelo contrário. Mas é que se fosse possível a um espelho ter sentimentos, aquele iria, com certeza, ser quebrado. Afinal, como vocês se sentiriam se pudessem, como ele, vê-la e refleti-la, mas não pudessem toca-la? Morreriam, não? Pois é, foi o que quis aquele pobre espelho: virar cacos.

Vestiu-se lentamente. Primeiro a calcinha, depois o sutiã e por último o vestido. Era discreto, na cor preta, daqueles que em dias de ventania ficaria esvoaçante. Ainda realçava, no decote em formato de V, os belos seios daquela moça.

Deu uma última volta para conferir se estava tudo em ordem. Retocou o rímel nos olhos. Ouviu a buzina tocando lá em baixo. Calçou as sandálias, apagou as luzes e saiu.

O espelho passou a refletir apenas a escuridão. E se, mais uma vez, fosse possível a um espelho ter e expressar sentimentos, com certeza veríamos lágrimas de tristeza escorrendo de seus olhos. Pobre espelho. Pode ver, pode refletir, mas não faz nada além disso. Se ninguém estiver em sua frente, não tem vida. Não tem memória, nada.

Essa é a vantagem de ser uma máquina filmadora. Mesmo velha, encostada em um canto da estante no canto do quarto, ainda posso gravar cada belo momento dessa vida. E depois de gravado, repriso por quantas vezes quiser.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Crise de Ciúmes

- E daí? Eu não quero saber desse nhénhénhém aí, não!
- E daí que isso é importante para mim. E eu não vou abrir mão disso.
- Pois saiba que, desse jeito, você é quem vai sair perdendo.
- Quem te disse isso? Por que você acha que eu vou perder alguma coisa? Se quer saber, eu penso exatamente o contrário. Acho que estou é ganhando. Perderia se agisse como você quer.
- O que você não percebe é que vai perder a mim.
- Perder você? Por quê?
- Porque já disse que não quero saber dessa sua historinha aí com esse cara.
- “Esse cara”? Presta atenção! Olha só de quem você está falando.
- É “esse cara” mesmo! Você já está toda amiguinha dele e eu não gosto disso.
- Olha, eu não vou nem responder...
- Isso. Não responde mesmo. Ignora. Finge que não tem nada acontecendo. Deixa ele cheio de gracinhas aí com você.
- Você é que não vê o tamanho do absurdo que você está falando.
- Absurdo? Você acha que eu estou falando absurdo? Absurdo é você ficar cheia de graça para esse cara. Ainda ri das coisas que ele fala. Concorda. Faz o que ele diz. Conta novidades, como se ele fosse seu melhor amigo.
- E se ele for o meu melhor amigo? Ou vier a ser? Você é que não consegue entender isso.
- Se ele virar seu melhor amigo eu deixo de ser seu namorado.
- Isso é uma ameaça? Não prometa coisas que você não vai poder cumprir depois, hein? Eu ainda não me esqueci daquela noite em que você prometeu uma viagem de navio e até hoje não ouvi falar nem do bote salva-vidas.
- É uma ameaça sim! Aliás, mais que uma ameaça. É uma certeza.
- E por que você está com tanta raiva dele assim? O que ele fez pra você? Você nunca nem falou com ele. Só o conhece de vista. Ta com medo de quê?
- Eu sei do que um homem é capaz. E é mais do que lógico que ele é apaixonado por você.
- E daí? Não é por isso que eu vou ser apaixonada por ele... você está com medo dele, ou de mim?
- Dele, lógico...
- Certeza?
- Claro!
- Não parece.
- Não tenho razão para ter medo de você.
- E de você?
- Como assim?
- Acho que você está com medo de você mesmo. De não dar mais conta do recado aqui.
- Você está louca? Olha o absurdo que você está falando!
- Absurdo é você ter ciúmes do meu personal trainer. Ainda mais de um personal gay...
- Gay?
- É, gay. Aliás, ele te acha uma loucura... quem tinha que ter ciúmes era eu!

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Sob domínio da bala

O Ford Ka tinha uma semana. Andava por todas as festas da cidade. Levava amigos e mulheres. Mas, sobretudo, amigos solteiros à procura de farra. O haviam comprado em algumas dezenas de prestações. Terminariam de pagá-lo só dali a anos. Mas nem precisou. O carro morreu antes, depois que o rapaz perdeu a noção e, o carango, o sentido e a capacitade de transitar por ai.

Numa das últimas noites que Marcelão, como era chamado, dirigia o carro, foi atacado de lado por um Escorte velho, caindo aos pedaços. A batida parou o Kazinho e fincou suas rodas no chão. Arrebentou a lateral e quebrou o eixo. Uma fatalidade. Parou o veículo, desceu e lamentou o ocorrido. O cara do Escorte fez barberagem, mas se sentia o dono da razão.

- Como é que tu anda no meio da pista, seu louco?, gritou.
- Ando no meio da pista é o caralho! Eu só fiz o balão e tu te meteu no meio, respondeu Marcelo.

O carro atacante quase se despedaça todo. Era velho demais. Marcelo, impaciente, queria resolver logo tudo e seguir pra festa. Estava puto porque, 30 segundos antes de fazer o balão, tinha tomando uma bala pra seguir em frente a noite toda. Ele e o amigo que estava do seu lado. Os dois queriam chegar na boate no clima, exaltados com a droga, novidade na época.

O problema é que “o filho da puta” do Escorte continuava achando que voava na razão e insistiu em chamar a polícia. O amigo do Celão tentou demovê-lo.

- Rapaz, não precisa. Nosso carro nem sai mais do lugar. Vamos embora e depois a gente resolve isso.
- Depois nada. Vamos fazer a perícia e ver quem está certo. Você andava no meio das duas pistas. Não devia fazer isso.

O cara parecia mais louco que os dois componentes do Ford Ka juntos. Lógico que ele estava errado. Mas insistia na tese de que detinha toda e qualquer preferência ao entrar naquele balão. Coisa de maluco que transita na cidade uma hora da matina.

Quando a polícia chegou, uns 10 minutos depois do acontecido, os corpos de Celão e seu amigo já se movimentavam involuntariamente. Os dois pés despisavam o chão com frenesi, pensavam no trance e davam uns pulinhos sem querer. Mas ainda tinham que conversar com a polícia, sob efeito do êxtase.

Enquanto o maluco do Escorte conversava com o guarda, tentando convencê-lo de que ele é que estava certo, os dois amigos pensavam na boate, nas meninas e no que seria daquela lombra, recém chegada em suas respectivas mentes. Estavam no lugar errado, com as pessoas erradas e fazendo as coisas erradas. Só quando escutaram um grito do outro lado da pista é que perceberam que ainda tinham função mais importante do que curtir um trance. “Ei, vocês! Venham aqui, por gentileza!”, gritou um dos canas.

Os amigos ficaram na dúvida. Um jogou para o outro a responsabilidade de falar com o guarda. “Vai tu!”. “Não, vai tu”. “Eu não vou!”. E enfim decidiram: “Então vamos os dois, porra!”.

Chegaram juntos e começaram o discurso. Enquanto um falava, o outro mexia as pernas e começava a rir. Ria baixo, de rosto virado, para que ninguém percebesse. Até que Celão, que falava com o guarda, percebeu a graça provocada pela bala e não se conteve.

- Seu guarda, precisamos ir. Não temos condições de ficar aqui, disse, sorrindo.
- Por quê?
- Porque esse carro é do meu irmão. Eu peguei escondido e agora tenho que ir embora, mentiu.
- E qual é a graça?
- Porque esse palhaço vive fazendo merda, desconversou, apontando para o amigo.

E iniciaram uma sessão de gargalhadas que assustou os três guardas. Pararam uns dois minutos depois, quando os canas iniciaram uma revista profunda no Kazinho, super desconfiados.

Sorte que não encontraram nada. Já tinham fumado o baseado da noite e tomado as balas.

- Oha, a perícia tá feita, mas vocês terão que tirar esse carro daqui.
- Mas ele não anda seu guarda.
- Então empurrem até aquele estacionamento ali e aguardem o guicho, disse um dos canas, louco pra ir embora.
- Tá.

Todo mundo tirou o time. Só ficaram os dois, loucos de bala e a fim de curtir a noite forte. Resolveram então deixar o carro lá, de vidros quebrados e porta entreaberta. Pegaram um taxi e foram pra boate. Curtiram o final do efeito da droga. Lá conseguiram mais. Amanhaceram dançando, depois foram beber na praia e ficaram por lá até o meio do dia. Só então foram pra casa. Dormiram o domingão inteiro. Esqueceram do carro.

Quando lembraram, não havia mais carro. Apenas uma lata, sem banco, sem para-choques, sem som, sem vidros e sem várias partes do motor.

Celão tentava lembrar da noite inteira. Recapitulou os fatos e pôs os pés no chão. Lembrou que a vida é difícil e começou a pensar numa boa desculpa para dar aos pais, que lhe deram o carro de presente, no maior esforço, financiado a perder de vista.

O carro acabou e meus problemas começaram, pensou.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Matemática

Divisão, pelo menos até aquele momento, era apenas uma operação matemática. Podia ser simples, como dividir dez por cinco, ou um pouco mais complexa como sete por quatro. Mas enfim, nada que uma calculadora não resolvesse, ainda mais com toda essa tecnologia disponível ao alcance das mãos. Era assim que ela pensava. Principalmente ela, que sempre teve facilidade com números. Aos sete anos já sabia de cor e salteado a tabuada.

E essa era a única idéia que ela tinha sobre a divisão. Puramente matemático, nada relacionado às emoções. O mais próximo que o ato de dividir tinha chegado ao seu coração foi uma vez em que, ainda pequena, teve de repartir a merenda e o chocolate com a colega de sala que não tinha lanche.

Mas ter o próprio coração dividido era algo que ela não imaginava. Pelo menos não até aquela tarde de domingo. Um dia um tanto esquisito, é verdade. Aliás, um típico dia brasiliense. O frio seco e cortante pela manhã, o sol que maltrata ao meio-dia e a tarde cinzenta, ora quente, ora fria. Sensações estas que pareciam com as do seu coração e barriga ao ver, no mesmo local, o seu atual-ex amor e o seu ex-atual amor.

Confuso? Sim, muito confuso. Na verdade, nem ela mesma entendia quem era o quê. É fato que naquele dia nenhum dos dois era oficialmente o seu namorado. Ambos eram ex. Mas também era certo que ela não tinha deixado de amá-los. E por isso sentia-se dividida. E por isso o coração quente e a barriga gelada.

Não sabia a quem escolher. Não tinha certeza se queria a altura, a pele negra, os cabelos trançados, a voz grossa e os olhos claros que lhe traziam calma, serenidade e muitos sorrisos; ou se preferia a força, a pele branca, os cabelos lisos e dourados, o tom de certeza, confiança e clareza nas palavras, apesar da loucura de garoto rebelde.

É certo que ela não sabia o que queria. Um tinha sido seu companheiro por muito tempo, vivido muitos momentos e passado por muitos problemas. O fim do romance foi calmo, mas, ao mesmo tempo, conturbado. Muitas coisas ditas da boca pra fora. Muitas outras não ditas. Raiva, choro, saudade, boas e más lembranças, abraços, pedidos, sentimentos, desejos, indagações.

O segundo era mais recente. Uma paixão que apareceu do nada e foi ao tudo em pouco tempo. Mas depois retornou ao nada e novamente chegou ao tudo e nesse efeito gangorra acabou se perdendo. Foi menos traumático, se é que se pode dizer que um fim de relacionamento não é trauma. Mas a confiança daquele rapaz e a paz que ele transmitia fizeram com que as coisas fossem menos dolorosas.

E ela, ali, entre um e outro, sentindo-se como um solitário ipê em meio ao gramado da Esplanada dos Ministérios. Sem nenhuma calculadora que pudesse ajudá-la a resolver aquela operação. Por que será que ainda não inventaram uma fórmula para resolver as equações do coração?

Bem, ela não sabia. E ali, perdida entre os dois. Disputada feito cabo de guerra, preferiu relaxar, curtir a música e observar o sol se pondo atrás da Torre de TV. Afinal, na escola, quando ela não conseguia resolver o exercício bastava ir ao fim do livro e encontrar todas as respostas. Ela então, esperaria chegar o fim do seu livro de amor, e com ele a resposta que tanto procurava.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Último dia

A chave que tocava o copo soava como um sino. A vodka já ultrapassava o efeito máximo. Ele passara da tristeza pra euforia e agora permeava a disolação. Vivia num mundo de bêbados. Todos com um copo na mão a procurar um parceiro. Era triste porque era tímido. Era tímido porque se achava diferente. E se achava diferente porque era gay. O mundo na porra desse lugar não me cabe, dizia, atacando a pequena cidade onde vivia.

Pessoas o olhavam de lado, com desprezo. Tudo normal para uma terra conservadora. Mas aquilo o incomodava. Batia no fundo da alma, perfurando as idéias. Por isso, tentara se matar duas vezes. A primeira com remédios. A segunda, enforcado. Amarrou um lençol na base do telhado, subiu numa escada e sentiu um leve aperto no pescoço. Mas doeu mesmo a bunda e a cabeça. O telhado cedeu e ele caiu seco. Um pedaço de telha terminou de quebrar bem na sua testa, embaralhando ainda mais as idéias.

A tentativa frustrada o fez largar o trabalho na mercearia. Resolveu faltar e foi pro bar. Decidiu que nada melhor na vida do que beber triste. Foi o que fez, durante sete horas seguidas. Quando não aguentar mais a disolação e a cabeça não conseguia mais martelar pensamentos, parou e começou a perceber o movimento da chave contra o copo de vodka.

Passou uns 15 minutos de cabeça baixa. Tudo rodava. Quando resolveu levantar a cabeça pra pedir mais uma, alguém puxou a cadeira e sentou.

- Oi.
- Como vai?
- Eu? Bem. Mas você parece querer morrer.
- Já tive vontade maior.
- Olha, rapaz, não quero te fazer feliz não, mas você não está sozinho nessa.

O homem via dois jovens de olhos puxados na sua frente. Usava uma camisa quadriculada, com os primeiros botões abertos. Dava pra se ver os pelos ainda tímidos saindo do peito. “Não enche”, respondeu. “Sou veado mas não preciso de consolo”.

Precisava sim. E o rapaz do corpo atlético e camisa quadriculada pegou sua mão, apertou: “Você tá sozinho, sua bicha, não vem bancar o forte que sei que és mais frágil que capim seco. Estou aqui pra ficar junto de você e lutar contra a merda desse lugar”.

Juntos, tomaram mais três doses e saíram do bar. Um não entendia o outro. O suicida pensava pouco. Só admitia que a vida é uma merda porque não é previsível. Sentia naquele momento mais uma oportunidade pra odiar tudo que passou. Tinha em sua frente a surpresa da noite, mas não gostou da forma como tudo aconteceu. Talvez porque estivesse bêbado. Mesmo assim, se sentia atraído pela firmeza daquele garoto. E imaginou que poderia se apaixonar e viver melhor.

Chegaram então numa casa abandonada. Encostaram na parede e a iniciativa veio do mais novo. Levou a mão por entre as coxas do outro e apertou forte. Aquele que era triste agora agarrava o pescoço do estranho para dar-lhe com a língua em seus dentes, apertar-lhe a bunda para, em seguida, baixar as calças.

O jovem tirou a camisa, deu uma volta em seu pescoço e perguntou: “Lembra-se do Jonas?”. Repetiu a pergunta pela segunda vez e não houve resposta. “Lembra-se do Jonas?”, repetiu, mais alto e mais agressivo. No alto da excitação, a resposta saiu como um gozo. “Claro, aquele garoto é ótimo. Foi pra você também?”.

O garoto era irmão do jovem José, recém chegado na cidade. “Ele é bom pra mim. Mas eu sou melhor pra ele”. Em poucos segundos aquele que parecia gay e aventureiro tirou uma faca de cozinha da meia e enfiou na barriga do funcionário da mercearia, pressionando e puxando para cima, num movimento vertical e fatal. Tudo foi muito rápido. A parede respingada de sangue só apareceu quando ele caiu aos seus pés, de joelhos, com a camisa quadriculada ainda no pescoço.

Olhou de baixo pra cima e sentiu a faca perfurar suas costas. Estava pronto pra morrer. Entendeu que tudo fora uma armação. Um truque bom, cujo final feliz era a morte. Sorriu e disse as últimas palavras: “Obrigado, obrigado”. Morreu com a lembrança do pobre menino que assediava na saída da escola por vários dias e violentara quando, enfim, perdeu as estribeiras. Caiu aliviado. Entregou-se para morte, como queria. E ainda com o próprio sangue nas mãos.